Texto e Fotos de Marcus Ozores
Boas tardes amigos e amigas desse espaço virtual. Desde que comecei a escrever esse diário tenho me abstido de sentar-me à frente do laptop, aos domingos. Mas hoje foi um domingo especial e, por isso, decidi registrar nossa caminhada do apê até a feira da Rue Mouffetard, ou a popular ‘Mouff’, hábito que cultivamos há mais de duas décadas, sempre aos domingos. A ‘Mouff’ tem 650 metros e liga a igreja de Saint-Metard, na esquina da rue Censier, até o alto da montanha de Saint-Geneviève onde está um dos mais prestigiados colégios de Paris, Henri IV na rua ao lado da igreja de Saint-Étienne-du-Mont (uma das mais lindas igrejas, de Paris, para meu gosto particular. Melhor luminosidade que já vi. Se você vier aqui entre nessa igreja, e se sente por pelo menos 15 minutos em silêncio e observe o jogo de luz que entra pelos vitrais).
Já os muros do colégio Henri IV você tem que enxergar, por detrás deles. Foi nesse local onde havia uma antiga casa abadial que teve início uma das mais lindas e trágicas história do amor de Abelardo e Heloisa. Era nesse local que Abelardo embriagava seus alunos, vindos de vários países europeus, com suas aulas concorridíssimas de teologia. Corria o século XI e a fama de Aberlado se espalhava por Paris e toda Europa. O tio de Heloisa, monsieur Fullbert, rico e influente na corte da França, decidiu contratar Abelardo, então com 37 anos, para ser preceptor de sua sobrinha Heloisa, então com 17. Abelardo foi morar na casa de monsieur Fullbert. Daí não preciso contar muito mais para vocês entenderem o que se passou. Transaram, Helô engravidou, fugiu de Paris para ter nenê, voltou para Paris, casou escondido com Abelardo, o tio dela mandou castrar Abelardo, Abelardo resignado aceitou a sua castração, Heloisa entrou para o convento, Abelardo também e o nenê fruto do amor dos dois, chamado Astrolábio (que nome!), foi doado para irmã de Abelardo. A história não acaba aí. Durante o resto da vida – nunca mais se viram – trocaram cartas de amor que faz parte até hoje das mais lindas cartas trocadas entre dois amantes. Abelardo e Heloisa são o símbolo dos universitários parisienses.
Após esse hiato do texto – que não sei se está dentro e fora do contexto – volto a narração do fim da manhã na Mouff. Bem, a Mouff é uma das mais antigas da vila e remonta ao século V ou VI. Especula-se muito a origem do nome e existem várias explicações, mas nenhuma suficientemente convincente, mas é o que pouco importa no momento. A Mouff, desde século XIX é uma feira permanente ao livre e, aos domingos, aparecem os expositores ocasionais.
O motivo principal de irmos até a Mouff hoje era para nos certificarmos que nosso amigo Christiam e sua trupe continuam vivos, comparecendo todos os domingos – do inicio do outono até o final da primavera – para entreter amigos e promover ‘guingete’ parisiense da Mouff. Guingete é, um baile de rua com participação do público que vem à feira. Durante 3 a 4 horas, Christiam e seu acordeom relembram velhas ‘chansons’ francesas e o grupo que o acompanha, há décadas, sempre presente para cantar e dançar. Muitos dos amigos do Christiam já partiram desse mundo para outro. Dentre eles o Getúlio, um velho marinheiro brasileiro, exilado em Paris desde 64, que morreu há uns 4 anos. Getúlio era presença obrigatória, todos os domingos, sempre calado e vestindo um terno puído preto assim como a pasta de couro. Getúlio deveria ter no máximo 1,55 e pouca prosa.
Ninguém nunca soube o que Getúlio fazia em Paris para viver, tampouco se tinha família. Alguém me disse uma vez que Getúlio havia ganho 100 mil euros numa aposta de corrida de cavalos e havia pedido para o Christiam, um dos seus poucos amigos, para guardar esse dinheiro para ele, pois, não queria colocar no banco. Se é verdade ou não, não sei, mas faz parte de uma das lendas urbanas da comunidade brasileira, que mora aqui, desde o golpe de 64, e que anda bem reduzida.
Fiquei triste ao ver que o público que frequenta a ‘guingete’ do Christiam é formada por senhores e senhoras de cabelos brancos e com pele enrugada, mas com orgulho de ainda poderem dançar e se divertir e manterem um pacto secreto contra o esquecimento. A única exceção é um jovem cadeirante que o vejo frequentar a ‘guingete’ nos últimos 6 anos, pelo menos. Alegria estampada no rosto o faz rodopiar com a cadeira de rodas no salão imaginário formado por paralelepípedos (só Chico Buarque para colocar essa palavra numa música). O pior momento mesmo – como vocês poderão ver nas fotos – é que o baile do Christiam ocorreu hoje ao lado de uma montanha de lixo que está vem se avolumando, nas ruas e calçadas, em decorrência da greve dos lixeiros, que já dura três dias.
Quem nos apresentou a ‘guinguete’ do Christiam foram nossos amigos Sergio Leite e Renata que moravam em Paris na mesma época que nós, entre 2001 e 2002. Depois trouxe ou indiquei para muitos amigos e amigas esse lugar como Reinaldo Pontes e o poeta e jornalista Sergio de Paula. Guinguete do Christian nos faz lembrar uma Paris que não mais existe e você só encontra exposta nos quadros do d’Orsay. A ultima vez que li notícia a respeito, no ‘Le Parisien’, há uns dez anos, existiam em Paris e grande Paris umas 5 ‘guinguetes’. O mesmo número dos encantadores de periquitos em Sampa (aquele que o periquito sai da gaiola para pegar uma sorte para cada criança).
Bem subimos a montanha de Sainte Geneviéve, saímos atrás do Pantheon e fomos direto até o boulevard de Saint-Michel, ao lado do Jardin de Luxembourg pegar o 38 e voltar para o apê. Viemos descansar, pois, logo mais a noite fomos convidados para jantar na casa de uma amiga francesa, profa. da Paris IV, e vamos comer umas quatro dúzias de ostras e eu já comprei dois Chablis. Depois eu conto.
Amanhã tem mais