Texto e fotos de Marcus Ozores
O Festival Amazonense de Opera está comemorando bodas de Prata nesse ano de 2023 e nos brinda com apresentação de extensa programação musical entre operas; seleção das árias famosas interpretadas pela nova iorquina, de origem grega, Maria Callas; ‘Navio Fantasma’ de Wagner, numa versão de teatro de marionetes e; uma opera infantil originalíssima intitulada ‘Curumim’ expressão carinhosa como os amazonenses – antes que o americanismo barato da Miami com cheiro de anticastristas aterrissasse de vez por essas bandas – chamavam seus pequenos.
Meu comentário hoje é sobre a magnifica apresentação a que fui assistir na primeira sexta feira de maio de 2023, dia 5, da opera ‘Anna Bolena’ com libreto do poeta genovês Felice Romani e música do romântico bergamasco Gaetano Donizette. Hoje, não vou comentar a história da música e o libreto sobre o final trágico da segunda esposa de Henrique VIII, história já muito revisitada, mas o universo mágico que só a Opera de Manaus proporciona aos seus espectadores, nesses 25 anos, desde o inicio do Festival de Opera na Selva.
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Antes, no entanto, é preciso rememorar como surgiu, no meio da floresta, a casa de ‘Opera da Selva’ sonho dos rudes europeus – primeiro os portugueses e depois os demais patrícios do velho continente – que vieram se aventurar no calor húmido e abafado da floresta amazônica na busca febril de riqueza fácil, alimentada por lendas medievais, sobre cascatas de ouro em pó e águas milagrosas que proporcionariam a eterna juventude. Não encontraram nem um nem outro. Mas um liquido branco, que pingava do caule das árvores, e os índios usavam para produzir umas bolas do que depois viria a ser chamado de borracha para se divertir.
O sonho da ópera da Selva só se concretizou, na terra dos antigos Manaós, quando o tenente negro Eduardo Ribeiro veio servir o exército em 1887. Republicano convicto foi escolhido como terceiro governador do Amazonas, em 1890, e foi o responsável pela remodelação e europeização da cidade cuja ápice foi a inaugurado do Teatro de Opera em 31 de dezembro de 1896.
Essa casa dedicada ao canto lírico, no meio da selva, é única e pessoalmente acredito que seja a mais perfeita acústica do mundo. É um teatro pequeno, com 700 assentos, se comparado às grandes casas de operísticas construídas, nesse mesmo período, em outras capitais na recém fundada república brasileira. A emoção ao subir os degraus de mármore e adentrar a plateia do teatro se constituiu numa experiência única. Em qualquer lugar desse teatro você se sente como se estivesse ao lado do fosso da orquestra e dos cantores que dividem o palco. O vibrato da soprano faz com que você tenha a sensação de vibrar seu coração conforme o agudo da nota vai crescendo e você, sentado na plateia, tem a sensação de fazer parte da trama que transcorre no palco.
Aqueles que não são amantes do canto lírico nunca entenderão por que nós, apaixonados pela trama operística, sempre assistimos e reassistimos as mesmas operas e eu respondo: “Cada apresentação é única e nunca mais você verá novamente”.
O Festival Amazonas de Opera sempre nos surpreendeu e surpreenderá como ocorreu, no ultimo dia 5 de maio, com apresentação de ‘Anna Bolena’ que foi um grandes papeis interpretado por Maria Callas a soprano absoluta e grande diva da opera mundial. No início da década de 1960, e após um casamento fracassado Callas se apaixona novamente e passa a viver junto com seu compatriota, o milionário grego Aristóteles Onassis (naqueles antigos anos 60 ainda não existiam os bilionários, tão comuns nos dias de hoje) e nunca mais subiria num palco operístico.
No primeiro acorde da Amazonas Filarmónica, regida por Marcelo de Jesus, o expectador se surpreende quando a cortina de veludo vermelho vai se abrindo e surge uma tela branca onde a projeção de imagens de Maria Callas, Jack Kennedy e Aristóteles Onassis. Um jogo de espelhos, entremeado com os acordes da abertura romântica da partitura de Donizette. As fotos do triângulo amoroso, ocorrido no anos 70, servem como mestre de cerimônia para o triângulo trágico que o espectador vai assistir nas próximas três horas de duração da trama de Donizete, no palco.
Na tela e no imaginário coletivo Maria Callas assume, no palco, o papel Anna Bolena; Jack Kennedy, nesse imaginário da opera dentro da opera, é a Giovanna Seymor a aia de Anna Bolena pela qual Henrique VIII se apaixonou perdidamente e esse amor incontrolável joga o rei inglês numa trama política já que a condição para se casar com Giovanna impõem a necessidade de se livrar da esposa, Anna Bolena. Na história real – e na opera de Donizette – o conselho dos nobres ingleses julgam e o rei classifica a pena: a decapitação da esposa Anna Bolena. A trama de Donizete que para com a morte de Anna, na vida real continuou e, além de desafiar o poder do Papa, Henrique VIII não apenas rompe relações com o Vaticano como cria só para ele, e para sua amada Inglaterra, uma igreja na qual todo rei ou rainha que assume o trono ocupará o papel do Papa. Rei dos Reis, cada um interprete como quiser.
A sutileza da cenografia pode ser destacada nas figuras das cantoras principais nos dois atos. Tatiana Carlos a soprano magistral que faz o papel de Anna Bolena se destaca dos demais presentes no palco por usar um vestido negro com rosas vermelhas em dissonância com cantores e cantoras com figurinos do século VVI usada pelos demais. No segundo ato é a vez de Luiza Francesconi, mezzo soprano, no papel da rival no amor do rei, Giovanna Seymour, aparecer em destaque entre os demais vestindo um conjunto rosa manchado de sangue.
Confesso que já havia assistido essa opera em outros tempos, porém, nunca havia me apercebido de um detalhe. Na segunda ária, do primeiro ato, entre Anna Bolena e sua aia Giovanna Seymor – quando ainda Anna desconhecia a traição amorosa da sua subalterna – ouvem-se três longas acordes que nos remete de imediato a modinha ‘Quem sabe’ do campineiro Carlos Gomes conhecido, pelas ruas de Milão, como o selvagem da opera. A magia da música é a influência das notas sobre novas notas já arranjadas e o rearranjos finais que os compositores emolduram suas partituras para embebedar noss’alma.
O destaque vai para a escolha dos cantores e cantoras escolhidas para os papéis. Nenhuma voz destoante, todas perfeita e meu destaque pessoal vai para a soprano Tatiana Carlos que nos seus agudos faz com todos os espaços do teatro sejam ocupados e vibrem com seu bel canto.
Finalizo esse breve comentário afirmando que enquanto tiver forças voltarei todos os anos para o Festival. Afinal o trabalho musical e cenográfico que se desenvolveu nesses 25 anos aqui em Manaus é digno de atenção em todo o mundo. O perfeccionismo com a escolha das partituras completas e não retalhada – como assistimos em muitas casas de operas pelo mundo – é o primeiro destaque. Em segundo vem o trabalho de formiga em formar jovens cantores, músicos, cenógrafos, marceneiros, figurinistas, cabeleireiras, maquiadores e tantas outras profissões. O diálogo entre a musica erudita branca e europeia e funde com o batuque das tribos e dos bois e com os do agogôs dos sambas que brotam nos bares e restaurantes no Largo São Sebastião. Além da formação de jovens profissionais o trabalho constante é na formação de público. Me lembro que quando comecei a vir a Manaus, há quase 50 anos, o palco do teatro era utilizado para formaturas de colégios e alguns cursos da iniciantes UFAM e eventualmente para teatro e apresentações musicais.
Não pretendo fazer crítica musical mesmo porque sou apenas um ouvinte curioso e apaixonado pelo canto lírico desde pequeno. Desde os tempos que meu pai e amigos se reuniam na varanda de vidro da nossa casa em Araraquara, nas tarde de sábado, para escutarem, na única caixa de som, da antiga Sonata, as vozes de Enrico Caruso, Bidu Sayão, da jovem Niza de Castro Tank, Beniamino Giggli e da revelação italiana à época Renata Tebaldi.
Opera é Vida. Viva a Opera.