Logo que o Hospital de Clínicas de São Sebastião começou a funcionar, eu gostava de visitar as crianças que aí estavam internadas. Quem cuidava delas com amor de mãe, era a enfermeira Dalila que, entre outras coisas, as levava para o banho de sol.
Certo dia, encontrando com elas, notei no meio de um grupo de criancinhas magrinhas e abatidas, uma menininha de cerca de cinco anos que se destacava por ser viçosa, alegre e participativa das brincadeiras. Não me contive em afirmar- ”Que beleza essa criança, dona Dalila!” Ao que ela respondeu :“Tenho muita pena dela, pois é a terceira vez que fica com a gente, recebe alta e daqui há a alguns meses, volta muito mal. E ela está novamente de alta e vai voltar para casa”…
A menina morava na Ilha de Búzios
A menina morava na Ilha de Búzios, município de Ilhabela. As enfermeiras do Hospital que tinham contato com sua família afirmavam que a criança tomava água com açúcar afim de completar sua alimentação. Acontece que ela tinha sido diagnosticada com uma diabete infantil. Pouco depois, veio a falecer.
Tudo isso me foi contado por Ivaldo, o filho homem de dona Dalila. Dona Dalila Sampaio de Freitas teve quatro filhos: Ilza, Ivone, Ivaldo e Ivete. “Mas desde que Benedito tinha 27 dias, ela o pegou para criar como se fosse nosso irmão de sangue”, diz Ivaldo.
A mãe de Benedito Hipólito de Freitas tinha depressão pós- parto, síndrome mal entendida na época. Ela, então era internada como “louca”. Acabou que seus outros dois filhos maiores, também foram cuidados por Dalila e sua família.
“Mamãe tinha uma forte ligação afetiva com o Hospital”
Os filhos de Dalila, como sua mãe, acompanhavam de perto tudo o que acontecia na enfermaria das crianças. “Mamãe tinha uma forte ligação afetiva com o Hospital no qual trabalhou desde sua inauguração. Esse amor principalmente pelas crianças aí internadas, ela passou para nós”, afirma Ivete. “Nossa maior alegria era quando chegava quarta feira e domingo, dias de visitas no hospital, quando podíamos ver e brincar com as crianças aí internadas”…
A vida dessa mulher foi dura. Seu marido era alcoólatra e metade de seu ordenado gastava com bebida. “Ele bebia em casa, não nos bares na rua”, conta Ivete. “Mas o dinheiro faltava ”. Daí sua mãe que trabalhava no hospital em turnos de 12 por 36 horas, também costurava e lavava roupa no tanque para fora, mexia na horta para prover verdura para sua família. “Além de tudo era uma excelente cozinheira”, afirma Alícia, sua bisneta que conviveu bastante com a bisa, já que moravam na mesma casa.
“Ela sempre tinha um sorriso nos lábios e palavras de espera”
Conforme o testemunho de sua filha Ivete, “Ela sempre tinha um sorriso nos lábios e palavras de esperança: “Dias melhores virão”, me falava ela. Às vezes eu pensava que mamãe não tinha ideia do que eu estava passando. Agora eu percebo que tinha, mas também tinha muita fé e esperança”.
Para manter a casa, Dalila muitas vezes tinha que deixar seus filhos sozinhos “Nossa irmã mais velha, Ilza, morava com nossa avó em Santos. Então, éramos nós três, sendo que minha irmã Ivone, tinha 14 anos. E nós cuidávamos direitinho de Benedito que era um bebê.”
Incansável se fosse para ajudar os outros.
Dalila era incansável se fosse para ajudar os outros. “Muitas vezes , ela chegava exausta do Hospital, mas já havia gente na porta pedindo para ela dar banho em crianças recém-nascidas, já que as mães não tinham coragem de fazê-lo”. E ela nunca se negava a ajudar os outros.
Acontece que naquela época não havia INSS e muitas vezes o Hospital ficava meses sem receber a verba do atendimento aos não pagantes, que era a sua maioria. Numa ocasião, o Diretor Clínico reuniu os empregados do Hospital e revelou não ter como pagá-los pois o Hospital estava sem dinheiro. Ele liberou quem quisesse ir embora. Dona Dalila, apesar de precisar desse dinheiro, continuou a trabalhar de graça. “Não posso abandonar essa criançada”, disse ela os filhos. E eles concordaram com a decisão da mãe.
Havia uma criança no Hospital que ficava chorando quando dona Dalila ia embora no final de seu turno. A criança corria atrás da enfermeira. Vendo o que acontecida o pediatra do Hospital, dr. Álvaro Pinheiro Mendonça, deixou que Dalila levasse a criança consigo, contanto que ela voltasse a dormir no hospital.
Era assim a ligação dessa mulher com suas crianças…
Ivete acredita que seu irmão Ivaldo é quem mais herdou o espírito de doação e Justiça da mãe. “Ele sempre está envolvido em trabalhos humanitários e voluntariado”. Ivaldo com a esposa Cecília, são responsáveis na cidade pelo trabalho de recuperação de drogados.
Dalila , nascida em 1924, morreu com 92 anos, em 1917, com 14 netos e 11 bisnetos. “Ela adorava ir para a Rua da Praia ver a fonte luminosa, participar de festas e jogar bingo. Não perdia nenhum desfile de Sete de Setembro, mesmo depois de velhinha”, diz Ivete que cuidou da mãe até a sua morte. “Mamãe era uma pessoa muito leve e alegre; conviver com ela era uma delícia”.
”Na arrelia, quando não canta, assovia”…
Havia um ritual em sua família : Cada vez que cumprimentavam a mãe com um “Bom dia”, ela completava: -”Como vai sua tia? Na arrelia, quando não canta, assovia”…
No seu leito de morte, quando estava toda entubada, seu médico disse “Bom dia”, e ela, aos sussurros, recitou para o médico, todo o versinho conhecido em sua família.
Sim, ao contrário de ficar amargurada com a vida difícil que teve, Dona Dalila como é conhecida e amada pelos que a conheceram, foi sempre uma mulher forte e feliz.