DIARIOS ATENIENSES
Texto e Fotos de Marcus Ozores
Nesse dia 26/01/2023, foi dia de ‘macuniar’, isto é, deixar o tempo seguir seu destino no relógio dos homens e ficar quetim, quetim. Dormi até mais tarde , no hotel fui um dos últimos a tomar café. Aliás, esqueci de comentar com vocês o café da manhã grego. Comem no café o mesmo que comem no almoço e no jantar. Vários tipos de salada, cebola rocha, pepino e tomate, esse último presente todos os dias. Acompanha ainda queijos, frios, ovos de um montão de jeitos, pães e aquela coalhada maravilhosa que só os gregos conseguem a consistência perfeita, cuja fórmula foi fornecida pela Atena pessoalmente, há uns 6 milênios atrás.
Confesso que nunca vi um povo prá gostar de salada como os gregos. Eles fazem pratos gigantescos de salada e ovos mexidos, nos cafés da manhã. Nos almoços e nos jantares vejo todo mundo comendo salada com mais alguma coisa. A salada sempre vem em primeiro lugar.
“Atenas, é a capital mundial das ‘padocas’ onde se come bem e barato.
Já que estou falando em café da manhã afirmo que a Grécia, e em particular Atenas, é a capital mundial das ‘padocas’. As ‘padocas’ daqui são tão boas e, algumas vezes, melhores que as nossas. E se você quiser comer barato e com excelente qualidade entre em qualquer ‘padoca’ que não vai se arrepender. Além do mais tudo aqui é fresco e sem aditivos. Uma das melhores culinárias que conheço. É possível comerem duas pessoas, com uma taça de vinho cada, por menos de 15 euros.
Bem, findo café, baixou um banzeiro daquelas que só Macunaima sabia definir: ‘ai qui priguiça’. Ai voltei para o quarto, deitei mais um ‘poquim’ e acabei lendo uma carta, de umas sete páginas, que o velho Sig, aquele que foi caricaturado pelo Jaguar, no Pasquim, isto é, o Sigmund Freud, escreveu três anos antes de morrer, datada de janeiro de 1936, a seu amigo francês Romain Rollad.
‘Um distúrbio de memória de Freud
A carta, que depois virou artigo, intitulada ‘Um distúrbio de memória na Acrópole’ seguida de um subtítulo ‘Carta aberta a Romain Rolland por ocasião do seu septuagésimo aniversário’. Na carta, Sig narra a visita que fez à Atenas, em companhia do seu irmão, em 1904, e deixa claro ao seu interlocutor que essa vinda a Atenas, por apenas tres dias, o havia perturbado muito. E essa perturbação, que ele não havia conseguido entender, até aquela data em que escrevia essa carta quando estava completando 80 anos.
Creio eu, que a perturbação freudiana real, deve atingir a todos aqueles e aquelas que tiveram aulas sobre Grécia antiga, quando pequenos ou jovens, e tem forte ligação com a história e não procuram a Grécia como imenso balneário (o foco do grande turismo para cá), nem para o consumo de cultura ‘en grand vitesse’, como dizem os franceses ou ‘em atacado’ para os brasileiros.
“Então tudo isso existe mesmo”
Sig, quando se viu no meio da Acrópole, pensou: “então tudo isso existe mesmo, tal qual aprendemos no colégio?”. Essa questão expressa, pelo pai da psicanálise, é a pergunta fundamental que eu e muitos como eu fazem ao se deparar com o templo de Athena. Será tudo isso verdade? Como foi possível essa sociedade construir há mais de 2,5 mil anos atrás tal edifício? Quem eram eles? Que força?
Essa questão que Freud colocou para si, só a conseguiu resolver – ou pensou que resolveu – 32 anos depois, ao redigir a carta para o amigo Rolland, que completava 70 anos no maio seguinte a data da carta. “Apenas duvidava se algum chegaria a ver Atenas. Parecia-me além do limite do possível, eu algum dia, viajar tão longe (…) isso se ligava as limitações e pobrezas das nossas condições e à pobreza das nossas condições de vida na minha juventude”. E continua Freud:
“Quando, pela primeira, uma pessoa enxerga o mar, cruza o oceano e sente como realidade as cidades e os países que por tanto tempo tinha sido distantes, inatingíveis coisas desejadas, então a pessoa se sente como um herói que realizou feitos de inimaginável grandeza”.
No fim da carta e fim do artigo Sig resolve a sua duvida, sobre essa viagem que o angustiou durante tanto tempo, e atribui o respeito que tinha ao pai e ao sentimento de se sentir culpado por ter conseguido na vida mais que o seu pai havia conseguido, como dono de uma pequena loja de tecidos.
A escolha do programa que fiz hoje teve a ver com a leitura da carta de Sig a Rolland. Explico, Sig diz que enxergar e cumprir o mar, cruzar oceanos e visitar novos países, novas cidades a pessoa se sente como um herói que realizou feitos de inimaginável grandeza. Acho que é assim que todos nós nos sentimos quando chegamos a Atenas e a Grécia. É como se voltássemos ao nosso útero histórico.
Por isso decidi passar o dia no museu da Arte das Ciclades. Um pequeno museu, situado perto do prédio do Parlamento, no centro de Atenas, e dedicado à arte dessas ilhas que já faziam esculturas há quase seis mil anos atrás. Eram os povos sem escrita, mas com uma arte maravilhosa. Nas fotos que publico tenho certeza que vocês encontrarão os traços de Modigliani, o gênio incompreendido.
Mas outro motivo que fui a esse museu é que está com exposição temporária sobre Alexandre, o Grande, e que tem o sugestivo titulo “o dia mudou o mundo” e se refere a Batalha de Charonea, de 338 a.C, quando os gregos foram derrotados e submetidos ao jugo dos Macedônios. Primeiro com Felipe II, pai de Alexandre e na sequencia pelo próprio Alexandre. E foi esse Alexandre, que teve como preceptor Aristóteles, que levou a cultura helênica para o maior império que o mudou já viu conquistado por uma só pessoa, em menos de 20 anos.
Acho que a figura de Alexandre ainda é uma imagem forte que faz parte do imaginário dos ocidentais quando querem se referir a uma vitória. Talvez naquela tarde de verão que Sigmund Freud estava estonteado com a beleza do prédio da Acrópole, tenha se imaginado, mesmo que furtivamente, como Alexandre.
Da mesma forma que nós quando visitamos a Acrópole nos sentimos de alguma forma vencedores, mini Alexandrinhos. Só espero que esses vencedores não ganhem batatas.
Amanhã tem mais.