Crônica de Maria Tereza Callefe*
Nas minhas lembranças Açorianas ( eu nasci na Ilha da Flores), há uma personagem protagonista do sentimento
do ilhéu: o mar. O mar que nos cerca, que nos revela a sensação do
infinito, o mar que nos consola, o mar que nos permite evadir através
da linha do horizonte, onde o quisermos por.
Minha amiga Regina Ivamoto, colega da turma de Letras, num recente
telefonema, fez referência à sua viagem a Portugal. Palavras textuais:
“Depois de perceber a relação do português com o mar, acabei me
entendendo melhor com Fernando Pessoa.”
Para nós, ilhéus, é vital a linha do horizonte.
Acabei me dando conta desta necessidade quando, em 1958, cheguei ao
Brasil e fui morar na cidade de São Bernardo do Campo. Alguma coisa me
incomodava como se fosse aa sensação de emparedamento. Não consegui
atinar com a causa daquele incômodo.
Mais tarde, “o acaso me protegeu quando eu estava distraída”: uma
neblina de manhã cedo na Via Anchieta, me trouxe de forma sorrateira a
bruma de nossas ilhas. Nesse instante, lembro-me muito bem da sensação
de alívio. Talvez esta emoção só possa ser entendida por algumas
amigas da Ilha das Flores que estejam longe de sua raiz, como Fernanda
Vieira e Cecília Wallow, recentemente encontradas nas redes sociais,
e, ainda sedentas da atmosfera de encantamento e respeito que nosso
mar infunde.
Apesar de a nossa ilha, a mais ocidental do arquipélago, ser, via de
regra, fustigada por violentos temporais marítimos, uma vez que sofre
a ação das correntes do Golfo, configurando-se assim a CA – a chamada
Corrente dos Açores -, apesar de tudo isso, é nela que nos sentíamos
inteiros e participantes, tantas vezes de cenários carregados de
sofrimento.
Ainda guardo uma imagem muito presente de um temporal marítimo. Era
bem cedo. As ondas arrebentavam no porto das Lajes e os barcos iam
sendo jogados pelas ondas contra os rochedos, feito barquinhos de
papel. Os pescadores, hirtos, mudos, impassíveis na aparência,
assistiam à derrocada de mais uma grande parte da sua liberdade de
subsistência.
Tanto mar e pouca terra representam a essência do ilhéu que, tão
magistralmente, Vitorino Nemésio retratou em Mau Tempo no Canal.
A respeito da obra, o comentário de autor desconhecido:
“Neste livro respira-se a melancolia do mar, a sensação de lonjura, de
liberdade e esperança: a sensação de ser ilhéu.”
Este mar sem fim é que nos remete sempre para a sensação de fazermos
parte da ilha, mormente quando estamos longe dela. Li em algum lugar
que a melhor forma de permanecer para sempre na ilha é sair dela.
Aqui estou eu, depois de 64 anos, olhando no porto das Lajes na parte
de cima, onde havia uma grande muralha, olhando a lida dos baleeiros.
Durante muitos anos, a caça à baleia representou a saída econômica
para o povo das Flores. O homem da ilha era, ao mesmo tempo, lavrador
e baleeiro.
De manhã ia-se para o campo, mas numa ponta da ilha, nas Lajes, ficava
o vigia da baleia. Quando, ao longe, o animal vinha à tona para
respirar, logo se percebia uma espuma branca. Sinal de baleia à vista.
O vigia dava o alerta, atirando um foguete. Depois ouvia-se o clamor
geral de “baleia à vista”. Os lavradores/baleeiros largavam a tarefa
no campo, corriam em direção ao porto. Havia uma competição para ver
quem conseguia botar primeiro o barco no mar. As mulheres, com
presteza, arrumavam um farnel. A lida seria longa.
Tenho uma fotografia gravada a cores e com muita luz. Os barcos no
mar, imensamente azul e os remos em cadência, recebendo o frescor da
água e o brilho do sol. Só uma sinfonia para expressar esta magnitude
ou a arte de um grande pintor. Estas imagens de ontem ainda
representam, a grande janela aberta para o sonho restaurador.
Sobre o homem baleeiro, fiz referência em BRUMA:
Depois, vinham também as notícias dos pescadores duros de olhos
apertados que se debruçavam em cima do oceano e lhe perguntavam coisas
e o oceano nada respondia porque tinha um mistério só seu guardado há
muitos séculos. E cada vez que os pescadores olhavam fixamente um
ponto branco no fundo do mar azul, aparecia um bicho enorme que
negaceava, negaceava e arrastava devagarzinho as canoas para bem
longe, onde os pescadores de olhos duros e secos acabavam banhando a
secura de tantos dias salgados com um banho morno que escorria pelas
encostas das rugas e se escondia nas golas ensebadas das camisas de ir
ao mar. Este banho morno representa a dor reprimida quando a baleia
morta era acompanhada até o cais pelos filhotes.
- A ocotogenária Maria Tereza Callefe, é uma nativa da Ilha das Flores , Açores, Portugal, que em 1958 mudou-se para o Brasil. Aqui formou-se em Letras na USP . Na década de 80 mudou-se para Caraguatatuba, onde trabalhou como professora de Português na Escola Colônia dos Pescadores. Casada com Geraldo Callefe, seu grande amor e fonte de inspiração ela é autora do livro ” Tecendo Memórias” , disponível em formato digital na amzon, no seguitelink: https://www.amazon.com.br/TECENDO-MEM%C3%93RIAS-Maria-Tereza-Callefe-ebook/dp/B01AKIPBNC/ref=sr_1_1?dchild=1&keywords=tecendo+memorias&qid=1628034781&s=digital-text&sr=1-1