Ainda Sobre o dia dos Pais.
`Por Liv Soban
Na praça, no meio de um bairro nobre de São Paulo, um carro popular estaciona na calçada do outro lado da rua. Era domingo e o movimento era inóspito. Razão talvez da criança abrir a porta, com uma bola maior que ela nas mãos, sair do automóvel que necessitava urgentemente ser lavado e até revisado, olhar atentamente para os dois lados e gritar, extasiada:
– Mamãe, não tem nenhum carro, vou atravessar direitinho. Vem logo, vamos brincar!
E a criança sai em disparado ao quadrado de vegetação em meio a tanto cimento, sem pestanejar. Com um pequeno lance de escadas, o pequeno voa pelos degraus e percebe, finalmente, que não tem ninguém ao seu lado. Ele olha finalmente para trás e grita mais uma vez:
– Vamos, mamãe, vamos brincar com a minha bola nova!!
A bola mais parecia uma bexiga gigante desengonçada. Era de um verde bandeira reluzente. O menino vestia uma camiseta listrada horizontal branca e de algum tom escuro e uma bermuda de malha azul marinho. Os tênis pareciam novos.
A mãe que já havia atravessado a rua, olha para o lance de escadas, para por alguns segundos e suspira. Começa a subir lentamente. Ela, de cachos apenas lavados, com uma bolsa-mochila de couro daquelas dos anos 90 apoiada em um dos ombros, vestia uma calça jeans escura semibag (sim, semibag), uma camiseta preta e sem corte, e segurava as chaves do carro em uma das mãos. A cada passo que dava sobre os degraus, sentia-se o peso extra em seus quadris. Estava claro que aquele peso não era dela.
Ao escalar aquela escada, ela só conseguia pensar em uma única frase: Eu estou cansada. Cansada de ser ela, cansada da condição que lhe foi imposta em ser mãe e pai, sem nunca terem perguntado o que realmente queria. Cansada de não ter tempo nem para lavar seus cachos perfeitos direito. Esgotada de não conseguir nem comprar roupa e muito menos ter vontade de, uma vez que não reconhecia aquele corpo que se dizia seu. Não pelo peso, o problema maior para ela era o de não se reconhecer. Se olhava no espelho e nada achava. Onde estava aquela garota cheia de sonhos que queria ganhar o mundo?
Onde estava aquela menina que, em um rompante não calculado se perdeu pelo seu caminho e não sabia como voltar?
O menino foi atrás dela, a puxou pelas mãos e a levou para onde estavam as outras crianças. O sol batia sobre toda a praça, só havia sombra embaixo das árvores centenárias. Era um dia lindo. Um dia lindo para ser feliz. Ela olhava para tudo aquilo e ansiava poder também deixar aquelas cores invadir seu coração, tomar a sua alma e fazê-la reviver. Olhava para seu rebento, fazendo forças para não odiar o pai ausente. Que nunca aparecia, muito menos financeiramente, quanto mais emprestando a sua barriga para o moleque encostar. Imperdoável.
E ela nem ligava para o marido, porque, no fundo, sabia, que havia feito muita força para manter uma relação fadada à falência. Porque insistimos em criar relações hipócritas e mentirosas em prol do quê? Quanto ela se fez gostar de coisas só para agradá-lo? Quanto ela fingiu ser outra pessoa só para dizer que era alguém digna de seu amor? Não, não mais.
Como num milagre dominical, ela se lembrou que estava livre. Não tinha tomado consciência, até aquele minuto, que aquele peso não estava mais lá e havia entendido que não precisava mais carrega-lo.
Olhou para o céu, tentando quase mirar o Sol, fechou os olhos e sorriu. Sim, ela estava cansada, mas percebeu que o cansaço era só dela e não mais de ninguém. E, pela primeira vez, em muito tempo, percebeu que o seu cenário não era mais cinza e poderia, agora, pintar com os matizes que ela quisesse.
Olhou para o seu menino, o chamou, deu um abraço bem apertado e o beijou. A criança olhou para ela e sussurrou no ouvido:
– Eu te amo, mamaim, e sou muito feliz de estarmos aqui juntos.
Seus lábios se abriram, mostrando seus 32 dentes. Deu um tapinha carinhoso no bumbum do seu – para sempre – bebê e o acompanhou enquanto brincava.
“Quando nos soltamos das amarras que nos colocaram por séculos, a felicidade chega no momento em que descobrimos que não é solidão o que sentimos, é liberdade”.
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