Cantinho da Proeira (memórias de São Sebastião )
Por Priscila Siqueira
(Homenagem a uma MULHER, do sertão da Enseada que não era a Amélia, mas era uma mulher de verdade!…)
No início dos anos sessenta, o sertão do bairro da Enseada, em São Sebastião, estava repleto de pequenos sítios cuja produção era vendida principalmente na cidade. Dona Aparecida era uma dessas sitiantes. São muitos os “causos” sobre essa mulher magrinha, de fala mansa, mãe de quatro filhos vivos, que apesar de ser a “Cida do Dito”, portanto casada com o Benedito, era ela quem comandava a família.
Acredito que dona Aparecida não tenha sido caiçara. Sua forma de falar, puxando os “erres”, lembrava mais os migrantes vindos do Fundo do Vale e que há muito habitavam esses sertões.
O caso da cobra
Uma vez, trabalhando em mutirão no roçado, uma cobra venenosa, creio que uma urutu, mordeu a perna de seu filho homem mais velho, então com uns doze anos. Todos na roça, incluindo seu marido, disseram:-“Põe um sapo para chupar o veneno da cobra”. Era crença difundida que o sapo, quando colocado sobre a mordida da cobra, engolia seu veneno.
Mas dona Aparecida não deu ouvidos aos conselhos recebidos. Colocou o moleque nas costas e rumou do sertão até o ponto de ônibus da Enseada, que ficava na estrada. Uma caminhada e tanto para uma mulher pequena carregando um garotão ora nas costas, ora no colo. Um parceiro de plantação, ficou com pena dela e a ajudou a carregar o garoto.
Dias depois fui visitar o menino no Hospital de Clínicas de São Sebastião. Sua perna estava completamente preta. O Médico que o tratou- Crispim Carvalho Noronha, foi enfático ao afirmar que se mãe não tivesse trazido o garoto para o hospital, o mínimo que lhe iria acontecer era perder a perna. Sua morte, era outra possibilidade.
Como a senhora está gorda!
Quando encontrava com ela, sempre me dizia -:
-” Dona Priscila, como a senhora está gorda!”
Eu engolia quieta minha indignação porque tudo o que uma mulher jovem daquela época não queria, era ser gorda…Porém, a conhecendo melhor, entendi o que ela e tantas outras caiçaras queriam externar com o “Gorda”: Era a pessoa bem alimentada, não apresentando as carências que porventura elas mesmos apresentassem… Ser “gorda” era de fato, um enorme de um elogio! Ser “gorda” de certa forma, era ser “rica”. Tanto que ao me visitar e ver o bercinho de minha filha mais velha, recém nascida, dona Aparecida não se conteve e falou
–“Que belezura ser rica…”
Tiro nos grileiros
A área do sertão da Enseada era cobiçada por muita gente de fora. Capangas mesmo. Um noite, sozinha em casa com os filhos, dona Aparecida percebeu pessoas andando em seu terreno perto de sua casa. Não teve dúvidas: pegou sua espingarda e atirou. Só escutou um grito e gente fugindo.
No dia seguinte havia uma grande mancha de sangue no chão de seu terreiro. Ela foi até a Delegacia de Polícia de São Sebastião, contar o que havia ocorrido. O Delegado, Ernesto Vivona, que tinha empatia com o povo pobre do município, a acalmou dizendo -“Se não tem ferido, se não tem morto, nada tem. Pode voltar para casa e ficar sossegada”. Sossegada ela não ficou. Estava sempre atenta às ameaças que porventura acontecessem com os outros sitiantes. Conversava com eles e montava estratégias para se defenderem naquela fim de mundo.
O intelectuar e o bananar
De outra feita, o namorado de sua filha mais velha, um jornalista da região, veio morar com ela no sertão. Era época de limpeza do bananal. Ela pediu à filha que chamasse o namorado para a ajudar nesta tarefa. Ao que a filha respondeu:-“Mãe, não dá; ele é um intelectual!”, “UÉ”, disse dona Aparecida, ”E “intelectuar” não pode trabalhá, não?!” Logo, logo o “intelectual” estava trabalhando na limpeza do bananal…
A cobra e a rataiada
Uma tarde dona Aparecida ouviu um barulho diferente no paiol onde guardava o milho. Munida de sua espingarda foi ver o que era. Uma enorme cobra estava comendo os ratos que moravam no depósito de milho, pois se alimentavam de seus grãos. Pacientemente, essa mulher fantástica, se sentou num banco de madeira e acendeu um cigarrinho de palha fumando calmamente. Quando a cobra tinha comido todos os ratos, ela deu um tiro na cabeça do animal. “De uma vez só, me livrei da cobra e da “rataiada” que comia meu milho”, me contou ela com alegria.
A Verminose matava muita gente
Como não havia sistema de esgoto na maioria do município, a infestação por verminose era brutal. Aparecidinha, sua filha mais moça, uma menina então de cerca de oito anos, precisou ser internada pois um bolo de vermes não deixava seu intestino funcionar. Algumas vezes, era necessária até a cirurgia, abrindo a alça intestinal da pessoa infestada, para retirar o bolo de vermes. No caso de Aparecidinha foram cerca de 400 lombrigas que se instalaram na sua “barriga”.
Quando uma pessoa morria cheia de vermes no intestino, o espetáculo era tenebroso: Os vermes desesperados com a morte de seu hospedeiro, saiam por todos os buracos que um ser humano tem em seu corpo…
Todas as semanas um grupo formado pelo médico Crispim, o dentista João Siqueira e algumas outras pessoas iam no bairro do Jaraguá na casa que nos era cedida para fazer o atendimento médico e odontológico primário. Quando o problema não podia ser resolvido aí, o paciente era encaminhado para a cidade.
Naum Alves de Souza estava lá
As outras pessoas dessa equipe iam de casa em casa do bairro, conversando sobre saúde e direitos de um cidadão. Naum Alves de Souza, que ficou famoso por ser um dos melhores cenógrafos do País, (fez a cenografia do show de Elis Regina, “Falso Brilhante”) fazia parte do grupo. Tinha na ocasião 19 anos. Ele era de Lucélia, cidade localizada na Alta Paulista, onde o grupo de paramédicos tinha trabalhado. Naum havia estudado Filosofia no colegial com Júlia, sua professora e que era esposa de um dos médicos que estavam em Lucélia e vieram para São Sebastião. Ele quis vir como grupo. Mais tarde, Naum foi para Ubatuba trabalhar com o movimento social encabeçado pela senhora Nilza do Valle.
Para mostrar a importância de se usar a “casinha“e não fazer as necessidades debaixo do pé de banana, Naum chegou a escrever uma peça com o personagem Jeca Tatu, de Monteiro Lobato. Essa peça era levada em todo o canto do Jaraguá e Enseada.
Banheiro ou pé de banana?
Cansado de ver que por mais que trabalhasse e desse remédios, a infestação de verminose não cedia, Crispim deu um ultimato: Foi dado um prazo para que cada família fizesse sua privada, sua “casinha”. Os moradores de um sítio que não a tivesse, não mais seriam atendidos pela equipe.
Passado o tempo combinado, o médico e seus colaboradores foram fazer a vistoria. A maioria das casinhas, de alvenaria, com cobertura de telha, e não de sapê como muitas das casas, estavam limpinhas e lindas
-“Mas como”, perguntou o médico:-“Vocês não estão usando as casinhas, continuam fazendo as necessidades nos pés de banana?”
-“O senhor disse que não atenderia quem não fizesse a casinha. Nós fizemos, mas não vamos sujar elas, não senhor…deram muito trabalho”.
O cu e as carças
Dona Aparecida era dessa mesma teoria. Apesar do que havia acontecido com a filhinha, ela e sua família continuavam a não usar a “casinha”. Um dia briguei com ela.
-“Dona Aparecida, a senhora não viu que sua filha quase morreu de tanto verme que tinha na barriga e a senhora insiste em não usar a casinha”?
Ao que ela me respondeu tranquilamente:
-“Adescurpe eu perguntar para a senhora. Mas o que tem que ver o cu com as carças?!”
Convencer essa mulher da importância do uso da “casinha” foi uma tarefa que valeu a pena. Ela era liderança no Jaraguá e na Enseada. Na luta pela posse da terra, foi exemplo para os outros sitiantes. Então, quando ela aceitou sujar a casinha e abandonar os pés do bananal como banheiro, seus colegas de lida aceitaram também.
QUEM FOI DITA DO LINO?
- N.R. Benedita Aparecida da Costa, era uma mineira radicada em São Sebastião , conhecida por Dona Cida do Dito, ou Dita do Lino, que foi lavradora e líder comunitária rural do Bairro do Jaraguá e que tinha um sítio próxima à escola e ao posto de saúde do Jaraguá, Enseada de São Sebastião. Teve quatro filhos, Idalina, ex-técnica de enfermagem da Prefeitura de São Sebastião, Messias, que foi genro do ex-vereador Onofrinho, Cida, Dona de Casa, e Orlando, trabalhador braçal. Foi casada com Dito do Lino, de onde veio seus apelidos, a Cida do Dito ou a Dita do Lino
A Autora
Priscila Dulce Dalledone Siqueira, 82 anos, paranaense, residente em São Sebastião, desde 1961, é jornalista profissional, com passagem por grandes jornais de São Paulo, autora de três livros , ativista social e ecologista .