Cantinho da Priscila Siqueira

A Caiçara que salvou a Congada de Ilhabela

O legado de dona Dedé

Iracema França Lopes Corrêa, conhecida por todos em Ilhabela como “dona Dedé”, é uma das figuras humanas mais respeitadas nesse município arquipélago do litoral norte paulista.

Terceira filha de um casal que teve dez rebentos, sua mãe Druziana Fazzini França era caiçara da gema. Seu pai, Cornélio Nogueira França, foi Delegado de Polícia indicado para trabalhar nesse município. Não deu outra: Conheceu a caiçara, apaixonaram-se, casaram e tiveram os dez filhos.

Dona Dedé, como era seu apelido carinhoso, nasceu em 1919. Por conta da profissão do pai que era sempre transferido de uma cidade para outra, ela nasceu em São José dos Campos, Vale do Paraíba.

Colocação pronominal foi o motivo do casamento

Formada em Educação Física pela Universidade de São Paulo – USP, casou-se com o advogado Renato Lopes Corrêa em 1943, na cidade de São Paulo. Segundo sua sobrinha , Maria Cláudia, ( mais conhecida como “Crau”) “ela sempre repetia que casou com ele porque ele colocava os pronomes corretamente, principalmente sabendo usar as ênclises e mesóclises”…

Apesar de morar algum tempo na capital paulista, Dona Dedé sempre visitava Ilhabela, acompanhando com paixão as manifestações culturais do povo caiçara de tal forma que, para entender e participar mais de perto do Fandango, Quebra Chiquinha, Caiapó, Cantoria de Reis ou da Congada, se inscreve e se forma na Escola de Folclore de São Paulo.

Quando o marido se aposenta, ela volta definitivamente para Ilhabela. Durante sete anos grava e pesquisa a Congada de Ilhabela e seu trabalho foi fundamental para que essa manifestação folclórica fosse recuperada com todo seu potencial.

A pesquisadora do Folclore que salvou a congada

Segundo Dona Dedé me contou, os congueiros são escolhidos entre os descendentes das famílias reais africanas que vieram como escravos juntamente com seus vassalos para esse litoral. Resultado dessa pesquisa nasce o livro “A Congada de Ilhabela na Festa de São Benedito”, de 1977. Ela trabalhou com os antigos Congos de Ilhabela como o Rei Neco, Pedro Embaixador, o príncipe Zé de Alício e Pedro Hercílio que- com seu vozeirão- entoava muito bem os cantos dos Congos de baixo. Atualmente é a nova geração que participa da Congada.

Muito interessante notar é que até os anos setenta, em muitas casas caiçaras havia o livro “Carlos Magno e os Sete Pares de França”. O tema dese livro é a luta dos cristãos e dos mouros na época das Cruzadas. O tema da Congada também é a luta entre o Rei- cristão, caracterizado pela cor azul, chamados ”Congos de cima” contra os mouros, “Congos de baixo”, que têm por líder o Embaixador e cuja cor é rosa.

Os congos de hoje em dia

A Congada – que também é uma homenagem ao santo preto católico, São Benedito – sempre se apresenta no mês de maio. Atualmente no final de semana seguinte ao do Dia das Mães. Antigamente, a Congada saía nesse mês mas no “claro de maio”, quando a lua muito clara não era propícia à pesca. “Hoje os Congos não são mais de pescadores”, afirma Crau . “Então decidiram sair no terceiro final de semana de maio”.

Assim, na sexta feira é levantado o mastro, no sábado, de manhã, a concentração em meia lua, bem em frente da Igreja Matriz onde recebem uma bênção. A partir daí e durante todo o domingo, os Congos começam a dançar nas ruas de Ilhabela. No encerramento, na tarde de domingo, a Congada volta para a Igreja e aí é rezada uma Missa com liturgia Afro.

A ucharia é uma das caracteristicas da festa

Uma das características dessa festa é a ucharia, local onde é oferecida comida para quem quiser, gratuitamente. Talvez seja porque o Congos desejem que toda população se agregue e participe de sua festa… Porém, reza a lenda , que São Benedito era cozinheiro de um rei e roubava a comida da despensa real para dar aos pobres. Sua festa acontece nessa ucharia, agora no salão paroquial. Durante muito tempo, acontecia da Colônia dos Pescadores de Ilhabela.

Para sua sobrinha Crau, dona Dedé, mais que uma pesquisadora fria e objetiva, ela se envolvia profundamente nas manifestações folclóricas. Gravava a Congada, arrecadava comida para a ucharia, ajudava em tudo que fosse possível. “Ela acabou sendo considerada uma deles”, diz Crau.

“O trabalho dela foi tão importante, que enquanto a Congada de Ilhabela estava viva, a de São Sebastião e Caraguatatuba haviam morrido. Só há poucos anos que essas manifestações no continente foram recuperadas”.

A “marimba de Ilhabela”,

Outro mérito dessa mulher foi mostrar ao mundo a “marimba de Ilhabela”, instrumento musical usado na Congada. Essa marimba de teclas de madeira e cabaças está agora no Museu do Folclore de São Paulo, segundo Crau.

Mas ela não se envolveu somente com a Congada. Morreu sem conseguir registrar em livro o Caiapó. O testemunho de sua sobrinha Crau é emocionante:“Ela havia pedido para eu fazer os desenhos do Caiapó. Mas acabei não fazendo. Quando fui visitá-la em sua casa poucos dias antes de morrer, pedi desculpas por não ter atendido seu pedido. Com um modo muito doce ela me disse :”Faça você esse livro””…

Infelizmente o Caiapô que se apresentava no sábado de Aleluia, acabou em Ilhabela. Era o Caiapó que abria o carnaval de Ilhabela.

Escola de Samba Garrafão da Ilhabela homenageou os grupos de Caiapó p GFotyos Prefeitura da Ilhabela

Divulgadora da Cultura Caiçara

Sempre que podia, Dona Dedé levava esses grupos de Ilhabela para se apresentarem nos festivais que havia na capital ou no interior, divulgando a cultura caiçara.

Como professora que foi trabalhando em Ilhabela, ela introduzia nas atividades educacionais a Quebra Chiquinha, trazendo as famílias para participarem da manifestação folclórica. Deu apoio ao artesanato caiçara feito nas ilhas de Búzios e Vitoria e foi presidenta eterna da Associação São Vicente de Paulo, no município. Os atendidos por essa associação também eram convidados a participar com as crianças da escola das Quebras Chiquinhas ou outras manifestações como o Fandango.

A Biblioteca municipal a Ilhabela

Ela fez com que sua irmã, Stella, que era bibliotecária em São Paulo capital, se mudasse para Ilhabela pois não aceitava o fato do município não ter uma biblioteca pública. Por pressão das duas irmãs, a prefeitura municipal abriu na Rua do Meio, em uma sala, a primeira biblioteca de Ilhabela. Hoje as bibliotecas públicas se espalham pelos bairros de Ilhabela.

Também lutou para que a prefeitura de Ilhabela tivesse uma Secretaria da Cultura. Ela foi a primeira secretária sem nada receber, pois não havia orçamento para sua secretaria.

Projeto Guaiamu,

Através do Projeto Guaiamu, criado por ela, Dona Dedé ainda foi responsável pela criação da Escola Profissionalizante do bairro do Itaguá. Ali são dadas aulas de costura, artes e matérias que envolvem a juventude local preparando-os para uma profissão.

A primeira pré-escola no município foi criada por Dona Dedé. Ela estava instalada numa sala do bairro do Perequê Mirim dividida por uma cortina. Hoje, as pré-escolas de Ilhabela- um município muito rico por conta dos royalties da Petrobrás – há outras pré escolas no município. Todas passaram a se chamar EMEI Cirandinha, como a primeira, escolinha de dona Dedé.

Filha traduziu Classico da Antropologia sobre buzios

Dona Dedé teve um casal de filhos; Ana Maria, já falecida e Luiz Octávio. Ana Maria foi responsável pela tradução do livro “ A ilha de Búzios – Uma comunidade caiçara no sul do Brasil” escrita em inglês pelo antropólogo Emílio Willems. O livro é considerado um clássico da antropologia brasileira pelo modo que enfoca o modo de vida caiçara desta ilha, a relação de seus moradores com a natureza, sua simbologia e imaginário.

Crau lembra a última vez que viu a tia militando em Ilhabela: ”Ela estava subindo as escadas da prefeitura para regularizar a papelada da construção da escola do Itaguá. Isso , pouco antes de morrer”.

Essa mulher maravilhosa faleceu em 2020 na capital paulista mas foi enterrada na ilha que tanto amou. Seu enterro foi acompanhado por congueiros que cantaram e tocaram seus instrumentos típicos como a marimba, até sua sepultura.

Em uma das dedicatórias feitas por ela no seu livro sobre a Congada de Ilhabela, ela abre seu coração dizendo:

À memória de minha mãe, origem de todo meu carinho pelas coisas simples de Ilhabela”.

Veja no vídeo abaixo, A Marimba de Ilhabela

Priscila Siqueira

Priscila Dulce Daledone Siqueira Nasceu Ponta Grossa, PR, em 1939. Cursou jornalismo UFRJ; Foi pioneira no jornalismo ambiental. É uma das fundadoras do Movimento de Preservação de São Sebastião e da Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro, além de ser uma das fundadoras da SOS Mata Atlântica. Foi professora da Escola Normal de São Sebastião

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