Os Diários do Ozores

Entre caminhos floridos e sombras antigas, Paris revela seus contrastes

Verde, memória e desigualdade em um dia de primavera fria

 


Primavera tímida e jardins por todos os lados

Ontem e hoje a primavera voltou a esfriar. As temperaturas caíram pela manhã e a máxima de ontem não passou dos 18 graus, com muito vento frio. O céu, como sempre, de um azul forte e nenhuma nuvem para atrapalhar a luz do sol que nos aquece.

Ontem foi mais um dia de percorrer os caminhos verdes que os parisienses cultivam tão bem — e fazem questão de ampliar nos cantinhos que podem.

Os pequenos espaços entre a calçada e o início de construções de prédios, por exemplo, sempre abrigam um jardim florido. É uma dedicação e paixão pelo verde que impressiona.

Talvez se explique pelo fato de que cada arrondissement (leia-se bairro) tem uma sede imponente da Prefeitura, e o serviço de parques e jardins deve ser intenso, principalmente nessa temporada de primavera e verão.


Do apezinho à floresta urbana

Ontem, explorei mais dois caminhos verdes próximos do apezinho onde estou hospedado, aqui no 12ème arrondissement. Saí do apê e entrei no caminho da Petite Ceinture, antiga estrada de ferro, agora caminho de passeio arborizado, cuja entrada fica em frente à portaria do prédio.

Peguei a Petite Ceinture em direção sul, e a 500 metros ela cruza com o Chemin Vert, outra antiga linha de ferro desativada em 1977 e transformada num longo caminho arborizado que liga a praça da Bastilha ao castelo de Vincennes, numa distância de 5,8 km.

Esse caminho, para quem não conhece, vale a pena. É lindo — lindo mesmo — todo verde, com árvores imensas e muita, muita flor, ainda mais agora neste mês de maio. Além disso, você encontra bancos para descansar em todo o trajeto e, melhor de tudo, água potável para beber. Paris sempre oferece água potável nas ruas aos caminhantes. Basta estar com os olhos atentos.


Lembranças do Brasil e seus caminhos esquecidos

No Brasil, você ainda encontra antigos bebedouros. Quando perambula pelas ruas centrais do Rio de Janeiro, é possível ver antigas fontes de água potável para a população matar a sede. Mas hoje estão praticamente abandonadas.

Em Campinas, lembro que ainda existe o resquício de uma antiga fonte de água para animais e humanos, próxima à antiga estação ferroviária, onde costumava fazer minhas caminhadas. Subia a 13 de Maio, atravessava a estação e a linha do trem, saía na Vila Industrial, virava à direita na Sales de Oliveira até encontrar a ponte sobre a linha do trem, atravessava em direção à rodoviária nova, passava por dentro dela, saía, passava pelo antigo mercadão (o prefeito conseguiu terminar a reforma?) e ia até o Café Regina tomar café com o grupo de velhos falastrões. Depois voltava para o quitinete no Largo do Rosário e ia para a Unicamp.


Da história de Paris à memória de Campinas

Bem, voltando aqui para Paris, em plena primavera… Ontem fiz um tour pelos caminhos — e descaminhos — do Chemin Vert e voltei para o apê. À tarde, precisei imprimir alguns documentos enviados pela agente de viagem e que devo apresentar no hotel do Cairo.

Fui até o Cours de Vincennes, a avenida que liga a praça de Nation ao castelo de Vincennes, onde está localizada a loja de impressão. Coloquei os impressos no bolso e decidi caminhar mais um pouco pela imensa calçada dessa avenida — larga como nunca vi no Brasil. Para atravessá-la, são necessárias duas etapas. Ufa.


Sarah Bernhardt em Paris e… em Campinas!

Andando em direção à praça de Nation, entrei à direita numa rua onde uma placa indicava Square Sarah Bernhardt, a lendária atriz francesa que ficou famosa por seu papel em A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho.

Sarah Bernhardt não foi só famosa aqui. Também foi aplaudida em São Paulo e em Campinas, onde se apresentou em 4 de julho de 1886. A notícia alvoroçou a comunidade. Os anúncios do grande evento foram inseridos nos jornais, destacando-se o publicado no Diário de Campinas, que reproduzo abaixo:

“Teatro São Carlos: A Volta do Mundo de Sarah Bernhardt – direção de Enry E. Abbey e Maurice Grau – Empresa C. Chiacchi – hoje domingo 4 de julho – primeira e única representação da célebre artista Sarah Bernhardt com o drama em cinco atos de A. Dumas Filho: A Dama das Camélias, às 8 horas em ponto. Os bilhetes em casa dos Srs. João Azevedo e Comp. até às 11 horas do dia.”

Tempos em que se adquiria ingressos na casa das pessoas.


A cena do parque e o incômodo silêncio das desigualdades

Voltando ao nosso cotidiano por aqui, logo ao entrar no parque — muito bonito, aliás — deparei-me com um parquinho repleto de crianças em brincadeiras: pequenos castelinhos de areia, balanços, triciclos, muitos carrinhos de bebês… e muitas, muitas babás.

Um detalhe, no entanto, chamou a atenção do olhar: todas as crianças branquinhas, muitas de cabelos e olhos claros — aquele modelo de criança que a Johnson & Johnson costumava usar em seus anúncios.

As babás? Todas negras. Sim, todas negras. Sem exceção. Será que é preciso perguntar alguma coisa?

Bem que o senhor Mohammed, o dono da loja de impressão, havia me avisado: da imensa massa de trabalhadores e trabalhadoras sans papiers — como se diz por aqui para os que não têm documentos — que trabalham por um salário de fome.


O amigo de Pessoa e o espelho da espécie

Me lembrei do Esteves, o dono da Tabacaria — o amigo de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa — e senti que o mundo ainda precisa de muito tempo para que possamos olhar nos olhos dos nossos semelhantes e concluir, ao menos, que pertencemos à mesma raça dos sapiens.

Amanhã tem mais.


 

Marcus Ozores

Marcus Vinicius Pasini Ozores é fotógrafo, jornalista, apresentador de TV , mestre em Ciências Sociais e Pesquisador Associado na UNICAMP

Artigos relacionados

Um Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo