Os Diários do Ozores

Adeus, Paris: cerejas, couscous e jazz na reta final

Quando a Torre vira lembrança, o couscous aquece e a saudade se veste de retalho chinês.

DIÁRIOS PARISIENSES

18 de maio de 2025

Au revoir, Paris

Bon jour a tous!

Decidi que hoje vou encerrar esse diário direto de Paris já que embarco, na próxima quarta-feira, dia 21, rumo à terra dos Faraós. Vou utilizar esses três dias que me restam para limpar o apê, arrumar malas e documentos e fazer os últimos ajustes para a viagem. Quando aterrissar por lá, vou ver como é a comunicação da internet e volto com os diários do Cairo. Diretamente de Queóps.

O frio que afastou a história

Ontem estava previsto que eu fizesse parte de uma caminhada, pelas ruas centrais de Paris, com um grupo de professores e estudantes que estudam história das independências dos países da América Latina, dentre eles o Brasil, por supuesto. Encontro estava marcado às 10h30 e o grupo deveria se reunir no n.5 da rue Viviane, bem em frente ao portão lateral de entrada da Biblioteca Nacional da França (BNF) e em frente a uma das entradas da Gallerie Vivienne. Cheguei precisamente às 10h00, mas fazia um frio danado, daqueles que não dá para ficar na rua com possibilidade de você se gripar. O dia estava nublado e muito frio mesmo. Decidi entrar na Gallerie Vivienne, tomar um café e aguardar para ver se o frio passaria.

Inútil. Deixei a Gallerie às 11h00 para pegar a linha de metrô 3 numa estação em frente ao prédio da Bolsa de Valores. Curiosamente, a Agência France Presse, uma das mais antigas agências de imprensa do mundo, fica defronte ao prédio da Bolsa e da estação de metrô.

Satie ao meio-dia

No café, consultei o aplicativo ‘L’Officiel des Spectacles’ e vi uma programação incrível. Dois pianistas jovenzinhos, de 21 e 23 anos, iriam apresentar um programa com composições de Erik Satie, pianista e compositor francês que inovou na música minimalista e cuja obra influenciou Claude Debussy. Aliás, o nosso maestro maior Antônio Brasileiro Jobim — formado em música erudita e apaixonado por Debussy — disse em diversas ocasiões que a bossa nova só existiu pela influência dele. Eu sou amante confesso da obra de Satie e, em especial, das suas Gymnopédies, peças curtas para piano de uma beleza celeste. O concerto estava marcado para as 12h00, de graça, na igreja São Pedro de Montmartre, ao lado da Catedral de Sacré-Cœur — aquele monstro branco que fica no topo da montanha de Montmartre e ocupa a cena parisiense de quase qualquer lugar que você esteja na cidade.

Montmartre desfigurada

Desci na estação de Anvers, na linha 2, saí da boca de metrô em frente à rue Steinskerque, uma rua de pedestres que dá acesso à escadaria da catedral. Já subi essa rua umas quinhentas vezes, mas fazia mais de 10 anos que não vinha por esses lados de Paris. Minha surpresa começou ao subir a rua e perceber que as antigas lojas de doces franceses dispostas dos dois lados cederam espaço às lojas dos chinas e coreanos. Sim, por aqui também eles dominam o mercado de bugigangas baratas. Hoje todos os chaveiros, miniaturas da torre, da catedral, daquelas bolas de vidro com neve, tudo isso é made in China. Desconfio que até a massa dos crepes venha da China, nos dias de hoje.

Religião, música e ironia

Terminada a subida da rua, peguei o funicular para subir a montanha, é claro. Não fiz promessa para subir de joelhos, uns mil degraus, para receber a graça. No meio desse murundum de gente se destacava um pastor neopentecostal, com bíblia nas mãos — aquele mesmo tipo de malucão que fica na Paulista ou na Sé gritando Romanos 3-43 ou Corintianos Univos 4-33, tentando arrebanhar mais um para o dízimo semanal da família pastoral.

Desci do funicular e fui direto para a igreja de São Pedro, uns trezentos anos mais antiga que a Catedral, para garantir meu lugar. Nem preciso dizer que valeu a pena.

Terminada a apresentação, saí e fui caminhar em direção à Place du Tertre, antigo reduto dos pintores desde os tempos que Picasso e seus amigos moravam aqui, em Montmartre, nos tempos das vacas magras, no final do século XIX e começo do XX.

Na época, Montmartre ainda não fazia parte da cidade de Paris e era uma região de chácaras produtoras de vinho barato, pois não pagavam impostos.

Desconheci a praça totalmente. Como fazia uma década que não passava por lá, percebi que a antiga praça, antes repleta de pintores vendendo paisagens de Paris e caricaturas dos turistas, agora está tomada pelos toldos dos restaurantes ao redor.

Parece barraca de festa de peão de Barretos. Um monte de gente comendo, bebendo e procurando por uma Paris que partiu daqui há muito tempo.

Curitiba, Juarez e a memória do Feio

Me lembrei que Juarez Machado, artista plástico brasileiro renomado em Paris, tem estúdio e é morador de Montmartre desde 1986. Aí me veio à memória que, quando jovem, em 1970, morei em Curitiba, pois havia passado no vestibular para jornalismo na universidade federal. Morei por um ano e meio na Casa do Estudante Luterano Universitário e dividi o quarto com o Feio, apelido do irmão muito mais novo do Juarez Machado. Não me lembro mais o nome do Feio, mas me lembro bem que ele tentava enveredar pelo mesmo caminho do irmão. Nunca mais o vi, mas recordo que seus pais iam quinzenalmente de Joinville a Curitiba para levar comida e roupas limpas.


 

Retalhos e retalhos

Bem, desci a montanha e caminhei pela rue d’Orsel, pegando a rua à esquerda em direção ao leste. O comércio de toda essa região é de lojas de tecido e, principalmente, retalhos. Se meu amigo Mingão estivesse vivo, adoraria passear por esse lugar. Ele foi um dos primeiros comerciantes da 13 de Maio, em Campinas, e montou uma loja chamada ‘Casa dos Retalhos’, obtendo sucesso absoluto no início dos anos 80.

A Babel de Barbès

Acabei minha caminhada na estação de metrô Barbès, reduto das etnias africanas e do Oriente Médio. Decidi subir o boulevard Barbès e me deparei com uma verdadeira Babel. Aqui você escuta árabe e inúmeras línguas das diferentes etnias africanas que moram por aqui. O que você não escuta é o francês. Aliás, tem uma feira semanal mais acima desse boulevard, acho que às quintas-feiras, onde você pode encontrar mandioca de excelente qualidade e todo o material necessário para uma boa feijoada. Se não quiser feijoada, o bobó de camarão está garantido.

Couscous e jazz ao entardecer

Depois de subir umas 8 quadras, decidi descer novamente em direção à estação de metrô e vi, numa ladeira, um restaurante marroquino oferecendo couscous. Não tive dúvida: olhei pelo vidro, vi várias famílias sentadas e muitos trabalhadores da construção civil. Claro que isso é garantia de que o restaurante é bom e barato.

Terminei de almoçar às 15h00 e entrei no metrô de volta. Ao descer na estação Picpus, outra surpresa. Uma banda de jazz dixieland tocava no coreto da pracinha do bairro. O sol surgiu, o frio fez pausa e abriu uma linda tarde primaveril, com crianças acompanhando o jazz segurando na mureta do coreto. No caminho da volta para o apartamento, parei defronte à frutaria e lá estava uma bandeja de cereja. Le temps des cerises est arrivé.

Até logo, com aroma de cereja

Agradeço a atenção de todos e todas que me acompanharam nessa aventura parisiense mais uma vez. Quando chegar ao Egito, volto a entrar em contato com todos vocês.

Até mais.

 

Marcus Ozores

Marcus Vinicius Pasini Ozores é fotógrafo, jornalista, apresentador de TV , mestre em Ciências Sociais e Pesquisador Associado na UNICAMP

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