Cartas Parisienses: Entre Flores, Vouchers e Clochards
Paris, Antes do Nilo: Crônicas de um Viajante Atento

Adeus a Pepe Mujica
Acordei hoje e liguei a TV para ouvir e ver os noticiários. Me deparei com a notícia do falecimento de Pepe Mujica. Uma morte anunciada há mais de seis meses, desde que o ex-militante Tupamaro e ex-presidente uruguaio decidiu abandonar a quimioterapia — o câncer, que trazia em suas entranhas, havia se espalhado por todo o corpo. Morreu na mesma chácara onde vivia, ao lado de Lucía, companheira de uma vida inteira.

Sua alma era libertária e seu cotidiano, de camponês basco cultivador de flores e verduras. Desnecessário qualquer comentário sobre a vida desse homem que nunca abriu mão do direito à simplicidade. Durante os cinco anos em que exerceu o cargo de presidente da República Uruguaia, ia e voltava ao trabalho dirigindo seu velho Fusca azul. Não dormiu uma única noite na casa destinada à família presidencial, mas sim em sua residência simples, de telhado de zinco, em Rincón del Cerro, na zona rural de Montevidéu.
Em dezembro último, ao descobrir que não havia tratamento possível para o câncer, fez sua última declaração pública — e se calou. Morreu em silêncio, tendo ao lado sua companheira e o perfume das flores que cultivava.
Rumo ao Egito
Bem, por aqui essa é minha última semana em Paris. No próximo dia 21 embarco à noite para o Cairo, no Egito, terra dos faraós, que ainda não conheço. A expectativa é grande. Ontem passei boa parte do dia lendo a última edição do Guia do Routard — guia feito para viajantes mochileiros que teve sua primeira edição nos anos 1970 por um grupo de jovens viajantes. Hoje, o Guia é uma poderosa empresa e cobre quase todos os países do mundo. Recomendo: ele traz exatamente as dicas que você precisa saber sobre o que vai encontrar no país a ser descoberto.
Vouchers, Impressões e Realidades
Estou aguardando o envio dos vouchers que devo imprimir e que me garantirão as estadias nos hotéis no Cairo, Alexandria e na sonhada viagem pelo rio Nilo. A agência de viagens me recomendou insistentemente que eu leve esses vouchers impressos. Então, ontem cedo, saí para caminhar pelo quartier à procura de uma loja de impressão. Até que não precisei caminhar tanto assim. A 500 metros do apê, na Avenida de Vincennes, encontrei — em um mesmo quarteirão — umas quatro gráficas rápidas, como as do Brasil. Fazem tudo e imprimem tudo. Até frações da sua alma são capazes de imprimir, se você pedir com jeito.
Aí veio o choque de realidade, que explico a vocês, mas peço que não comentem com os franceses…
O Preconceito Parisiense e os Negócios Imigrantes
Por aqui, o preconceito racial é forte, principalmente com negros e africanos. Leia-se africanos: aqueles que, no Brasil, chamamos de árabes, oriundos do norte da África, na borda do Mediterrâneo. Três dos quatro proprietários das lojas em que entrei eram marroquinos ou tunisianos.
Aliás, os pequenos comércios que oferecem serviços como barbearias, manicures, alimentação etc., são dirigidos majoritariamente por estrangeiros — na maioria, descendentes de árabes, negros e, de uns anos para cá, asiáticos.
Os asiáticos, por exemplo, são admirados pelos franceses em geral — dizem que eles assimilam a cultura francesa e se integram melhor que os africanos. O que os franceses, especialmente os parisienses, se esquecem de mencionar é que Argélia, Marrocos e Tunísia foram colônias francesas ao longo dos séculos XIX e XX. Sem falar no Vietnã, no Camboja e na Guiana Francesa, nossa vizinha, ao lado do Amapá.
A Guiana, aliás, tem status diferente: lá se vota para presidente da França e há representação no Parlamento. Já o preconceito de cor, esse não muda.
Reflexão: Entre Paris e o Brasil
Com essa brevíssima reflexão, não quero dizer que o Brasil é o paraíso da democracia cultural — porque não é mesmo. Aliás, a situação tem piorado muito nos últimos tempos. O aumento do preconceito racial, especialmente nas mídias sociais, e a territorialização e gentrificação dos centros urbanos são claros sinais disso.
Café, Apostas e Solitude
Depois de chutar algumas tampinhas nas imensas calçadas da Avenida de Vincennes, parei num café — de propriedade de chineses — em frente à Place de la Nation.
Observei a entrada de dezenas e dezenas de velhinhos e velhinhas indo comprar ‘raspadinhas’ e apostar em uma loteria tipo bingo, que corre ao vivo a cada 15 minutos, transmitida por TV a cabo.
Você joga e acompanha o resultado ali mesmo. Uma máquina de enganar trouxas — e idosos que, na maioria, vivem sozinhos em minúsculos apartamentos de quarto e sala.
Outra coisa: as bets também invadiram o cotidiano francês. Os anúncios nos intervalos dos noticiários falam sobre como você — o otário — pode ficar milionário em segundos.
Picard e os ‘Clochards’
Saí do café e voltei rumo ao apê. No caminho, parei numa loja do Picard — essa fabulosa rede de comida congelada onde se encontram refeições prontas a partir de 2,50 euros, em porções individuais.
Ali se encontram também sobremesas; e, se preferir, pode comprar cebolas descascadas, alho, ervas de todos os tipos, alcachofras, cogumelos, camarões, vieiras etc. Tudo supercongelado. Basta colocar na panela ou no micro-ondas e, em poucos minutos, sua comida está na mesa.
Houve tempos em que supermercados daqui vendiam refeições supercongeladas assinadas pelo falecido Paul Bocuse — um dos mais renomados chefs da cozinha francesa.
Na saída do Picard, deparei-me com um verdadeiro clochard, sentado na calçada, pedindo algumas moedas para a parca refeição do dia, com um livro aberto na mão.
Clochard é uma categoria de mendigo que sempre foi acolhida pela sociedade parisiense desde a Idade Média. Basta ler qualquer livro de Victor Hugo e você o encontrará presente em algumas páginas. Clochard não é apenas um mendigo. Muitos tiveram posições destacadas entre os “homens de bem”.
Porém — e como em toda a história humana, sempre há um “porém” — de uns anos para cá, o tal do neoliberalismo que invadiu esse mundão de salve-se quem puder encheu as ruas de Paris de pedintes e famintos, refugiados das guerras que assolam os continentes europeu e africano. O quadro social se alterou, e a fome também está presente nas ruas da Cidade Luz.
Aí me lembrei de uma frase perfeita do escritor siciliano Tomasi di Lampedusa, autor do romance O Leopardo:
“Algo tem que mudar para que tudo continue como está.”
O Sol do Couscous
Voltei para o apê e almocei um macarrão tailandês com frutos do mar. À noite, tinha jantar marcado com uma amiga brasileira, residente aqui em Paris há mais de quatro décadas, num pequeno restaurante marroquino de nome sugestivo: Le Soleil.
Claro que o prato foi couscous com merguez e vinho rosé originário do Marrocos. Hassam, o simpático proprietário, dirige o restaurante ao lado da esposa. Ele lembra todos os donos de botequins que conhecemos: barriga avantajada, barba por fazer, o eterno avental branco abaixo da barriga e um sorriso largo no rosto.
Amanhã tem mais.
Great insights! This really gave me a new perspective. Thanks for sharing.