Os Diários do Ozores

Reflexões sobre a Guerra, Gatos e Crepes

A história da École Normale Supérieure

Bon jour a tous!

Hoje, mais uma manhã de céu azul e sem nuvens, com temperatura oscilando entre 7º e 16º de máxima. E hoje se comemora, aqui na Europa e no Brasil também, a efeméride dos 80 anos desde que foi assinado o tratado de paz entre aliados e dois militares alemães, pondo fim a 6 anos de guerra (1939-1945) que consumiu a vida de aproximadamente 60 milhões de pessoas.

Os canais das TVs francesas, desde o início da manhã, os primeiros jornais matinais noticiam homenagens em várias capitais europeias referentes à data e mostravam a mesma imagem de um grupo de soldados colocando coroa de flores no túmulo do soldado desconhecido. Aliás, desde que o mundo é mundo, é sempre esse mesmo soldado desconhecido o primeiro e o último a morrer.

E do outro lado do Atlântico, nessa guerra de narrativas como estamos tão acostumados nos dias de hoje, Trump afirmou que “a vitória foi alcançada principalmente graças a nós, goste ou não”, declarou o Imperador pouco depois de emitir a proclamação. Agora, o novo Imperador determina, por decreto, 80 anos depois, afirmando que os EUA venceram a Segunda Grande Guerra praticamente sozinhos. Talvez, penso eu, John Wayne, acompanhado das suas inseparáveis 45 na cintura, sozinho tenha desembarcado em terras estrangeiras, no início de 1942, e o título do filme seria: “Sozinho na guerra”.

Passada essa profunda reflexão sobre os destinos do mundo ocidental, confesso me incomodar em ler, nas páginas do New York Times, logo cedinho, que, pelas declarações de Trump, os EUA venceram sozinhos a guerra. O Imperador do Norte, no entanto, se esquece de dizer que a armada azul e branca só entrou na guerra em 1942, depois que Pearl Harbor foi bombardeado pelos japoneses, caso contrário, há sérias dúvidas se os EUA participariam ou não da guerra.

Finda a elocubração matinal, ontem a Fifi voltou a aparecer na janela ao lado da janela do apezinho onde estou e até sorriu para mim. Fazia sol e ela saiu para se espreguiçar e fazer coisas que só as gatas de três cores sabem fazer. Ficou ali deitada, se contorcendo e, depois, num gesto largo e soberbo, se retirou para seus aposentos de majestade.

Ontem pela manhã, fiquei no apê lendo e escrevendo e, no almoço, abri a geladeira e tristemente constatei que estava vazia. Logo ao sair do apê, uma pequena surpresa. Alguém colocou na árvore em frente à porta do prédio dois bonecos de ursos pandas, talvez para nos lembrar da necessidade e do compromisso que todos nós temos em salvar esse planetinha em que vivemos como inquilinos.

Bem, saí pelo quartier procurando um lugar para comer. Qual a surpresa ao encontrar, a uns 800 metros daqui do apê, uma crêperie sarazin. Isto é, faz um crepe com farinha sarazin, farinha integral escura, como se serve na Bretanha, região ao norte de Paris. No Brasil, nunca encontrei esse tipo de crepe, mas é o melhor que existe. E para seguir a tradição, o menu é todo em crepe: crepe salgado, salada e crepe doce, acompanhado, como na Bretanha, por uma xícara de chá de sidra gelada. Delícia. No Brasil, onde se desconhece essa tradição da Bretanha, podemos ser originais e comer um crepe acompanhado de uma xícara de sidra Cerezer, tão antiga quanto a caixa de Maizena nas gôndolas dos supermercados, mas que dá para se tomar. Não por acaso, a sidra Cerezer é uma das bebidas mais vendidas no Brasil e pouca gente sabe disso. O meu crepe salgado pedi com ovo, queijo brie e linguiça, e para sobremesa, crepe de açúcar com limão. O curioso é que é servido o crepe com açúcar e um quarto de limão siciliano para você espremer sobre sua panqueca, e posso garantir que fica ótimo.

Voltei para o apezinho, escovei os dentes e, em seguida, saí para o compromisso do dia: participar de um seminário quinzenal organizado pelo Grupo de Estudos do Brasil Contemporâneo, que existe aqui em Paris há mais de três décadas. Esse grupo realiza seminários quinzenais sobre os mais variados temas da área das ciências sociais, com apresentação, na maioria das vezes, de trabalhos de professores e alunos brasileiros ou franceses cujo objeto de pesquisa é o Brasil. Frequento esses seminários desde quando vim morar aqui em Paris pela primeira vez, em 2001-2002, e lá se vão 23 anos. O local do seminário é uma sala no centenário prédio da École Normale Supérieure (ENS) na Rue d’Ulm, uma das ruas que termina no lado direito do Panthéon. Aliás, fiz uma foto onde mostro o Panthéon ao fundo. Uma quadra à frente do portão de entrada da École Normale está o Museu Curie, onde ficava o antigo laboratório da cientista polonesa e do seu marido, o cientista francês e seu companheiro de pesquisa Pierre Curie.

Mas voltando à École Normale, foi fundada durante a Revolução Francesa, em 1794, no dia 9 Brumário do ano III – sim, a Revolução Francesa mudou o calendário da França, por isso ano III – e para nós, comuns mortais, a data é 30 de outubro de 1794. Ufa, ainda bem que o calendário revolucionário não durou muito. A ENS foi a primeira escola normal do mundo e seu objetivo era ensinar a ensinar, e continua fiel aos seus princípios até hoje. A arquitetura do prédio tem características monásticas e foi construído sobre o antigo vinhedo do convento das irmãs Ursulinas. No interior do prédio encontra-se um grande espaço interno – como nos antigos conventos havia um claustro onde os monges caminhavam em silêncio para rezar e refletir –, aqui a estrutura é semelhante e é conhecido como ‘nobre claustro intelectual’, como o chamou Romain Rolland, ex-aluno da École Normale e Nobel de Literatura em 1915. Por esses corredores e bancos no claustro passaram vários nomes que foram nossos mestres e autores preferidos, como Raymond Aron e Jean Paul Sartre.

E ontem, após entrar no centenário edifício, me dirigi ao claustro que, na primavera, é lugar exuberante com árvores, flores, bancos e cadeiras para os jovens estudarem e passarem longas conversas, e alguns piscarem de olhos. Imaginei Sartre sentado em algum desses bancos.

Findo o seminário e antes de ir ao pub Gay-Lussac – por aqui, até os bares e pubs ostentam nomes de cientistas e intelectuais franceses –, fui a um sebo e me deliciei com os títulos e os preços. Os livros de bolso, por exemplo, estão por 2 a 3 euros, e a quantidade é infinita.

O livreiro, um senhor de cabelos brancos que se deixou fotografar, é colecionador de máscaras de várias partes do mundo, que as coloca acima da cadeira de onde dirige seu sebo. Fiquei um bom tempo pesquisando títulos nas prateleiras. Daí saí e fui ao Gay-Lussac para encontrar os participantes do seminário e terminar o dia com um copo de chopp gelado e tábua de frios.

Eram mais de 21h00 quando saí de lá. Em menos de 30 minutos, estava abrindo a porta do apê vindo de transporte público, primeiro o ônibus 27 e depois o bonde T3a, que me deixou a 200 metros do apartamento. Só para não esquecer de dizer: aqui, o transporte público funciona e você tem inúmeras opções. Depois eu conto.

Amanhã tem mais.

Marcus Ozores

Marcus Vinicius Pasini Ozores é fotógrafo, jornalista, apresentador de TV , mestre em Ciências Sociais e Pesquisador Associado na UNICAMP

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