A Contadora de “causos’ e histórias
Por Priscila Siqueira
“Eu cresci com minha cidade, desde o tempo em que era uma aldeia, até agora que não se acha lugar para estacionar o carro”, afirma essa caiçara nascida Neide da Rocha Medeiros. Atualmente ela é a mais famosa contadora de histórias e “causos” de nosso litoral, a Neide Palumbo.
Nascida em 1942, sempre foi uma menina “revoltosa”… “Comecei a falar muito cedo e adorava ir para a sorveteria de meu pai, na Rua da Praia. Um dia, com pouco mais de dois anos, subi no balcão e gritei:-Viva o Partido Comunista do Brasil! Viva Luiz Carlos Prestes… Os homens que estavam no local, ficaram horrorizados. Falaram para meu pai que eu iria ser presa. Seu pai não deu atenção:-“Ela é uma menininha, ninguém prende criancinha”..respondeu ele. “É” responderam eles, “mas podem prender você, porque o que ela falou deve ter ouvido em casa”…
A família de Neide veio para São Sebastião proveniente de Paraibuna. Seu pai, José Rocha Medeiros mudou-se com a família para Caraguatatuba a fim de trabalhar na Companhia dos Ingleses. Quando saiu de lá, tentou abrir um bar e sorveteria nessa cidade.”Mas a energia elétrica de Caraguatatuba era muito fraca e não podia mover a máquina de fazer sorvete. Então, meus pais se mudaram para cá onde nasci”.
o “Bar Esporte” e o rabo de galo
Em São Sebastião o pai de Neide abriu o “Bar Esporte” que era uma mistura de bar, sorveteria e pequeno armazém. Esse era o ponto de encontro dos homens sebastianenses que adoravam o “Rabo de Galo” aí produzido. “Os vereadores da cidade se encontravam no bar de papai antes das reuniões da Câmara para fecharem seus acordos, tudo movido a Rabo de Galo” diz sorrindo Neide Palumbo. “Meu pai acabou sendo ele mesmo vereador e já nessa época lutava pela preservação do centro histórico de nossa cidade”.
Ela tem esse sobrenome porque no início da década de 60 conheceu o carioca José Luiz Palumbo que veio trabalhar do Terminal Almirante Barroso da Petrobras e com ele casou. Mãe de quatro meninas e um homem, Neide se formou professora na cidade de Taubaté.
“Acho que ninguém acreditava que eu desse para estudar pois quando criança, nas aulas da escola pública eu vivia no mundo da lua. Mais tarde que descobri o porquê da lousa e da letra das professoras serem um borrão imenso para mim: eu era míope e não sabia”.
Quando Neide contou ao pai que não enxergava bem, ele a levou para um oftalmologista na capital, São Paulo. “ Se o exame médico mostrar que você nada tem, vai apanhar na frente do doutor”, avisou o pai. Afinal essa era uma empreitada extremamente cara para a família.
As desconfianças de Neide se revelaram verdadeiras: ela tinha ,na época, 2 graus de miopia.“Meus óculos chegaram pelo correio numa caixinha de madeira. Quando coloquei na vista e olhei a praia, me embriaguei com a beleza que até então estava escondida de mim”.
“De São Sebastião a Caraguá mais de 1h de viagem”
O primeiro ano do então ginasial, Neide fez em Caraguatatuba. O ônibus 49 que que transportava os alunos de São Sebastião até a cidade vizinha, levava mais de um hora de viagem numa estrada muito ruim. O motorista “seu” Natalino costumava parar o ônibus na estrada cercada de mato, para os meninos pegarem coquinhos.
Para sorte de Neide que repetiu o primeiro ano ginasial, no ano seguinte abriu em sua cidade um Ginásio também.
“Minha mãe trabalhava demais: Além da filharada, era ela quem fazia o sorvete e comida não só para a família como também para os agregados que trabalhavam no bar e moravam no fundo de casa. Ela não tinha condições de me vigiar a toda hora, quando era pequenininha. Daí eu fugir, sempre que podia, para o bar de papai. Quando eu chegava lá ela me dava ou sorvete ou balas, que mais eu ia querer?!…”
Como era São Sebastião antigamente?
Adolescente, as grandes diversões que acidade lhe proporcionava, era a matinê de domingo, onde passava filmes do “Três Patetas”, “O Gordo e o Magro” e do “Flash Gordon” que a meninada chamava de “Transbordo”. “Havia também a Rádio Nacional com suas novelas. A mais ouvida era o “Direito de Nascer”.
“Quando era hora dessa novela , tudo parava mesmo que fosse uma festa…Eu também adorava as aventuras “Gerônimo, o herói do sertão”. Aliás, nas festas de aniversário só havia três opções de presente: uma lata de talco, sabonete ou um corte de flanela para fazer um pijama. Era o que o comércio local proporcionava a seus compradores…
Uma as maiores alegrias de Neide, quando criança e adolescente, era frequentar a casa de “seu“ Severino Ferraz Costa , hoje recuperada como Espaço Cultural. “Na sua casa havia livros para tudo o que era lado e sua esposa, dona Maria José, costumava contar histórias para mim e sua filha Maria Raquel que era um pouco mais nova que eu. Maria Raquel sempre foi minha melhor amiga”.
São inúmeras as histórias de Neide com essa amiga. “Ela era rica e sempre usava vestidos de tafetá, acinturados e bem rodados. Vestia meias brancas com os sapatos de verniz. Nos cabelos ela sempre havia um laço de fita”.
“Um dia eu, com oito anos, fui catar berbigão pois a maré estava baixa e o barro da praia cheio de bichos. Quando vi, estava Maria Raquel atrás de mim, toda enlameada. Chorando, ela pediu para eu levá-la para casa, já que estava com medo da mãe. Não deu outra: quem ouviu fui eu, acusada por dona Maria José, de quase matar sua filha afogada na lama ”.
Esse incidente deixou a menina Neide muito triste, porque a privaria de voltar a frequentar a casa da amiga, ler os gibis, ouvir histórias de dona Maria José e se encantar com os livros que aí havia. Mas tudo foi resolvido uma semana depois, com a própria mãe de Maria Raquel convidando para Neide voltar a ir à sua casa.
livro “São Sebastião do meu Tempo de Menina” resgata a história
No final dos anos 80, aposentada e com filhos criados, Neide começou a contar as histórias que havia presenciado em sua vida. “O que é verdade e o que invenção minha, não sei. Só sei que aprendi o sotaque caiçara com as pessoas que convivi como professora quando dei aula em Paúba e Maresias”.
Outra atividade que “adora” é o bordado. “Apesar de sempre muito ocupada, mamãe me ensinou a bordar.”. Hoje Neide faz verdadeiras telas bordadas com as mais diferentes figuras. Muito espiritualizada, anjos e santos são um exemplo de sua produção.
Neide escreveu o livro “São Sebastião do meu Tempo de Menina” que conta suas lembranças. Por tudo isso, foi homenageada pela Prefeitura Municipal de São Sebastião, em 2022, como “Mestra da Cultura Viva em Literatura e Artesanato”.
Mais do que justo, Neide Palumbo!
VEJA NO VIDEO ABAIXO NEIDE PALUMBO CANTA BEIRA MAR
N.da R. O livro de Neide está disponível no link https://www.estantevirtual.com.br/livros/neide-palumbo/sao-sebastiao-do-meu-tempo-de-menina/3459286585
A AUTORA
Priscila Siqueira,83 anos. é Mestra Proeira da Cancioneiro e jornalista e escritora com passagem pelos maiores jornais do Brasil . Conheça os livros de Priscila nos links http://Genocídio dos Caiçaras | Amazon.com.br
Trafico de Pessoas https://www.travessa.com.br/trafico-de-pessoas, a Outra Face de Eva https://www.travessa.com.br/a-outra-face-de-eva-relacoes e o O Sonho de Julieta, sobre a história do Hospital de São Sebastião, pode ser visto no link https://issuu.com/kapop/docs/siqueira__priscila_-_o_sonho_de_jul