Crônica e Fotos de Marcus Ozores
Confesso aos amigos e amigas que estou finalmente terminando a minha livre docência em ‘Nefelomancia’. Comecei minha graduação, ainda menino, sob orientação da minha mãe que, no final das tardes quentes, em Araraquara, estendia um lençol alvejado por cima da grama do quintal e colocava eu e meu irmão mais velho, cada um ao do seu lado, para nos deitarmos de barriga para cima e juntos observarmos as nuvens do céu, durante horas.
Naquela época eu ainda não sabia o que queria dizer ‘Nefelomancia’. Só vim aprender muitos anos mais tarde que ‘Nefelomancia’ é a junção de duas palavras de origem grega de onde ‘nefelo’, significa nuvem e ‘mancia’, adivinhar, portanto Nefelomancia é arte de prever o futuro observando as nuvens.
Dizem as más línguas que Aristóteles foi o maior expert nessa arte. Chegou a escrever um tratado sobre o tema intitulado ‘A arte de prever o futuro a partir da observação cientifica das nuvens’. Esse livro fez grande sucesso na ‘Academia’, fundada por Platão, em Athenas. O único exemplar que existia da obra estava depositado na biblioteca de Alexandria, porém, ele desapareceu nas cinzas no ano de 642 da era cristã, 900 anos depois de Aristóteles escrever a primeira versão.
Escrevo sobre Nefelomancia, pois, desde ontem estou em São Luís do Maranhão. Na viagem vim observando as nuvens da janela do avião e avaliando o futuro que me esperava aqui na cidade de Gonçalves Dias, Artur Azevedo, Coelho Neto, Ferreira Gullar, Josué Montelo, João Lisboa, Graça Aranha entre tantos outros. A ultima vez que estive por aqui foi em 2016, um ano após Flávio Dino ter assumido o governo do Estado.
Minha esperança era que, o que li na nuvens, durante o percurso do aeroporto de Guarulhos ao Marechal Cunha Machado, estava definitivamente errado. Li nas nuvens que a cidade continuava linda, mas destruída. Explico: São Luís deve ter sido uma das mais lindas cidades do Brasil com seus casarões e palacetes suntuosos com as paredes cobertas de azulejos portugueses. Afinal, o Maranhão dos séculos XVIII e XIX foi um dos mais ricos estados da Colônia e posteriormente Império do Brasil.
Após quase sete décadas estudando as nuvens quase não erro nas minhas previsões sobre o futuro.
Acordei bem cedo para caminhar à beira mar. Estou hospedado na praia do Calhau, uma das praias mais badaladas da cidade, num hotel defronte ao mar. Praia linda com muitas ondas e uma infraestrutura de bares e restaurante que humilha qualquer praia de paulista e digo isso com convicção, pois, moro parte do ano à beira mar, em Barequeçaba. Após a caminhada descubro que a praia linda e maravilhosa é impropria para banho (aqui a falta de esgoto é o que une ricos e pobres desde a Colônia, segundo um amigo que reside aqui há décadas).
Bem, após a caminhada fui de uber em direção ao centro histórico. Confesso a vocês que caminhar pelo centro de São Luís é uma experiência incrível. A cada quadra você se depara com uma arquitetura mais linda que a outra. O problema é que os antigos casarões dos senhores do algodão estão em ruinas. Não sei avaliar, mas creio que 50% dos casarões estão fechados e outros 40% caindo e uns 10% são usados como moradia ou pequenos comércio. Como restaurar custa muito caro e os herdeiros desses imóveis normalmente não tem recursos a melhor política é deixar cair tudo. Daí me lembro que centenas de jovens brasileiros, grande parte deles arquitetos estão se mudando, de mala e cuia, para Itália e Portugal onde adquirem imóveis pelo irrisório valor de 1 euro com o compromisso de restaurarem os prédios antigos em cidades que estão desaparecendo por falta de moradores. No Brasil, ao contrário, tem muita gente e nenhum incentivo para investimentos nos centros das cidades que cada vez mais ficam largados ao abandono com os invisíveis assumindo as ruas.
Na minha caminhada de hoje fui almoçar no restaurante escola do SENAC que continua com cardápio impecável e o cliente é tratado com deferência e muita cordialidade.
Findo o almoço e após caminhar por algumas ruas centrais perto da alfandega e arredores fotografei inúmeras casas e prédios públicos. Nós, brasileiros e brasileiras, temos o maldito costume de destruir verbalmente tudo o que temos. Falamos mal de tudo e de todos e, o pior, quase nunca temos propostas. Cansei desse tipo e continuo um otimista, eu e Joseph Climber.
Nessa caminhada, através do olhar de fotografo consigo ver a beleza na decadência e entender o abandono e os invisíveis que se espalham pelas calçadas na busca de dois tostões para juntar o dia inteiro o dinheiro para um salgadinho com café. Consigo ver a beleza na fachada de um prédio sendo consumido pela ação do tempo com restos de parede cobertas de lindos azulejos portugueses de uma época que eram pintados à mão. Consigo ver beleza até nas pixações de protesto, de amor, de ódio espalhadas nas paredes das casas e do comércio. Não vou fazer desse texto um tratado de sociologia de botequim, mesmo porque não tenho nenhuma vontade disso. Apenas constato pelo meu olhar e pelo meu faro que há algo de podre no reino. Solução: não tenho. Me esqueçam para tanto.
O melhor do dia foi a visita que fiz, pela primeira vez, às dependências do teatro Arthur Azevedo, localizado na rua do Sol. Esse teatro de ópera batizado com teatro União abriu as portas ao público em 1817. É o segundo mais antigo teatro operístico no Brasil. O mais antigo é de Ouro Preto. O teatro foi construído pela iniciativa de dois portugueses com financiamento privado na época em que o Maranhão era o mais importante estado com economia baseada na plantação do algodão.
Confesso a vocês que ganhei meu dia ao me deparar com algumas surpresas que relato a vocês a seguir. A primeira é que no dia 21 de julho de 1854, uma jovem atriz, de origem portuguesa, dava à luz, no camarote 1, do referido teatro União, a sua primeira filha batizada Apolônia Pinto. Até aí não me disse nada. Porém, chegando ao hotel começo a pesquisar e descubro que Apolônia Pinto foi considerada a mais importante atriz do teatro brasileiro e foi fundadora da Casa dos Artistas, no Rio de Janeiro, onde veio a falecer 83 após nascer no chão do camarote do teatro, onde seu pai, também ator, se apresentava naquele noite. Diz a lenda que, aqui na terra do nosso poeta da ‘Canção do Exilio’, que Fernanda Montenegro foi assistir a uma peça de Apolônia, no Rio de Janeiro, quando tinha oito anos e após o termino da peça ela se encantou com Apolônia e prometeu a ela que também seria atriz. Tem informações que eu não discuto e acredito piamente. Tentei comprar livro sobre Apolônia, sem sucesso. A bibliografia é escassa e o teatro embora mantenha dois bustos no foyer da entrada, um de Apolônia e outro de Arthur Azevedo, não tem nenhum material impresso ou digital sobre a grande atriz do teatro nacional.
Pelas placas pregadas na parede dos corredores internos do teatro – que você só pode observar as terças feiras à tarde, durante a visita aberta ao público – pelo teatro passaram grandes nomes do cenário operístico e teatral dentre eles Bidu Saião, a grande soprano brasileira que morreu na Califórnia, Vicente Celestino um tenor que se notabilizou com a canção ‘O Ébrio’ e Fernanda Montenegro que deve ter vindo conferir o nicho que foi construído no teatro, do lado de fora do prédio, para abrigar os restos mortais de Apolônia.
Para encerrar um fato curioso. Até a década de 1970 não havia banheiros no teatro. A rua ao lado do teatro que forma um beco é conhecida até hoje como a ‘rua da bosta’. Façam uma pequena associação. Maranhão foi um dos estados brasileiros com o maior numero de escravos do país. Portanto basta uma leitura rápida pelos livros de história para saber como as elites brasileiras se portavam nos teatros operísticos durante o Império. Ou como as pessoas faziam suas necessidades fisiológicas nas casas grandes.
Até amanhã.