Diario do ano da peste de 16 de outubro de 2021
Texto e vídeo de Marcus Ozores
E hoje é sábado dia 16 de outubro. E como hoje é sábado hoje é aquele dia que o nosso senhor Jesuscristinho gosta de vir à Terra ver pessoalmente para ver como estão se comportando aqueles que seu Pai os fez a sua imagem e semelhança. Ele já me disse que não vem aqui para vigiar ninguém, mas que o que gosta mesmo é da bagunça geral nos botequins nos sábados de sol. Também me disse que gosta muito de ficar disfarçado de menino, na praia, vendo o mar e se divertindo com os jovens jogando frescobol e ri porque acha graça nessa palavra e diz separando as silabas: fres -co- bol e ri sem parar.
Nosso senhor Jesuscristinho aos sábados gosta de vaguear pelas ruas das cidades e me segredou que gosta de bebericar uma caipirinha com torresmo, principalmente quando vê um bar com mesa de bilhar. Me disse que numa de suas vigílias pelas ruas da Lapa, nos anos sessenta, viu uma partida de bilhar entre Rui Chapéu e Carne Frita. O jogo durou cinco horas e no finzinho Carne Frita, numa tacada de gênio, fez a branca dar uma curva na preta e encaçapar a rosa no buraco do fundo, deixando a branca pronta para matar a preta na caçapa do meio.
Me lembrei de Malagueta, Perus e Bacanaço o livro de inesquecível de João Antônio. A conversa com nosso senhor Jesuscristinho ainda durou um pouco a mais enquanto experimentava uma caipirinha de uvaia, que não conhecia, e a achou a mais deliciosa fruta que já experimentou na vida. E num momento em que me levantei da cadeira para pegar uma cerva gelada ele sumiu, pois, amanhã é domingo e ele tem que assumir seu lugar naquela cruz que tem no Céu e que serve de modelo a todas as outras que estão espalhadas aqui na Terra.
E hoje nossa nau da língua portuguesa viaja a Pernambuco para visitar os versos do poeta Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira, nascido em Palmares, em 9 de maio de 1895 e falecido em Recife, 5 de maio de 1965. Ascenso Ferreira ficou conhecido por integrar o movimento modernista de 1922 com uma poesia que destacava a temática regional de sua terra. Usava sempre um grande chapéu de palha, que o caracterizava.
Vou ler para vocês um poema belissimo de Ascenso Ferreira que tem o título de
OROPA, FRANÇA E BAHIA
[Romance]
Para os 3 Manuéis:
Manuel Bandeira
Manuel de Sousa Barros
Manuel Gomes Maranhão
Num sobradão arruinado,
tristonho, mal-assombrado,
que dava fundos pra terra.
(“Pra ver marujos,
Tiruliluliu!
quando vão pra guerra…”)
E dava fundos pro mar.
(“Para ver marujos
Tiruliluliu!
ao desembarcar”).
…Morava Manuel Furtado
português apatacado
com Maria de Alencar!
Maria era uma cafuza,
cheia de grandes feitiços.
Ah! os seus braços roliços!
Ah! os seus peitos maciços!
Faziam Manuel babar…
A vida de Manuel,
que louco alguém o dizia,
era vigiar das janelas
toda a noite e todo o dia,
as naus que ao longe passavam,
de “Oropa, França e Bahia”!
– Me dá uma nau daquelas,
lhe suplicava Maria.
– Estás idiota, Maria.
Essas naus foram vintena
que eu herdei de minha tia!
Por todo o ouro do mundo
eu jamais as trocaria!
Dou-te tudo que quiseres:
Dou-te xale de Tonquim!
Dou-te uma saia bordada!
Dou-te leques de marfim!
Queijos da Serra da Estrela,
Perfumes de benjoim…
Nada.
A mulata só queria
que Seu Manuel lhe desse
uma nauzinha daquelas,
inda a mais pichititinha,
pra ela ir ver essas terras
de “Oropa, França e Bahia”…
– Ó Maria, hoje nós temos
vinhos da Quinta do Aguirre,
uma queijadas de Sintra,
só pra tu te distraíre
desse pensamento ruim…
– Seu Manuel, isso é besteira!
Eu prefiro macaxeira
com galinha de oxinxim!
“Ó lua que alumiais
esse mundo do meu Deus,
alumia a mim também
que ando fora dos meus…”
Cantava Seu Manuel
espantando os males seus.
“Eu sou mulata dengosa,
linda, faceira, mimosa,
qual outras brancas não são”…
Cantava forte Maria,
pisando fubá de milho,
lentamente, no pilão…
Uma noite de luar,
que estava mesmo taful,
mais de 400 naus,
surgiram vindas do Sul…
– Ah! Seu Manuel, isto chega…
Danou-se de escada abaixo,
se atirou no mar azul.
– “Onde vais, mulhé?”
– Vou me daná no carrossé!
– “Tu não vais, mulhé,
mulhé, você não vai lá…”
Maria atirou-se n’água,
Seu Manuel seguiu atrás…
– Quero a mais pichititinha!
– Raios te partam, Maria!
Essas naus são meus tesouros,
ganhou-as matando mouros
o marido de minha tia!
Vêm dos confins do mundo…
De “Oropa, França e Bahia”!
Nadavam de mar em fora…
(Manuel atrás de Maria!)
Passou-se uma hora, outra hora,
e as naus nenhum atingia…
Faz-se um silêncio nas águas,
cadê Manuel e Maria?!
De madrugada, na praia,
dois corpos o mar lambia…
Seu Manuel era um “Boi Morto”,
Maria, uma “Cotovia”!
E as naus de Manuel Furtado,
herança de sua tia?
– Continuam mar em fora,
navegando noite e dia…
Caminham para “Pasárgada”,
para o reino da Poesia!
Herdou-as Manuel Bandeira,
que, ante minha choradeira,
me deu a menor que havia!
– As eternas Naus do Sonho
De “Oropa, França e Bahia”…
Manuel Ascenso Ferreira