Diário do ano da peste de 26 de outubro 2021
Texto e vídeo de Marcus Ozores
E hoje é terça feira dia 26 de outubro e o mundo segue seu destino, apesar das besteiras que se falam aqui, em Terras de Pindorama. E é por isso que continuo lançando minhas granadas diárias contra o besteirol com o “Só a poesia nos Salvará”, direto das areias das praias da República Anarquista dos Tupinambás, de Barequeçaba.
E hoje, caminhando aqui, nessas areias de Barê, quando, num estalo, me veio à mente uma lembrança infantil, dos tempos que andava descalço pela pracinha da única igreja de Trabiju, na época distrito de Boa Esperança do Sul, distante 30 km de Araraquara. Não devia ter mais que cinco ou seis anos quando pela primeira vez um grupo de ciganos acampou na pracinha ao lado da plataforma da estação. Foi um verdadeiro agito no vilarejo que não passava de 500 almas. Lembro que fiquei horas olhando aquelas famílias levantando suas barracas, em círculo e armando uma fogueira no centro e me maravilhando como aquelas pessoas podiam viver daquela maneira sem residência fixa e eram livres, pois viajavam para onde o vento soprasse.
Fiquei sentado na calçada, ao lado do meu finado amigo Zé, em frente ao armazém do pai dele, quando um adulto nos fez levantar e nos mandou para casa dizendo que os ciganos roubavam crianças e nós poderíamos ser as próximas vítimas. Acho que é coisa de velho lembrar de fatos ocorridos há mais de 60 anos, mas, como Ilhabela aí ao fundo, me lembra o reino de Itaca onde ficava o trono do grego Ulysses, parece que nesse nosso mundo Glocal, isto é um misto de global e local, se achar grego e os outros bárbaros – e, portanto, inimigos – é o resultado melancólico dessa nossa civilização que, em vão, busca a paz.
E como estou falando sobre meus tempos vividos no interior paulista, dedico hoje minha leitura, ao maior pesquisador da cultura caipira paulista o escritor e poeta Cornélio Pires nascido em Tietê em 1884 e que faleceu em Sampa em 1958.
Cornélio Pires foi autor de mais de vinte livros, nos quais procurou registrar o vocabulário, as músicas, os termos e expressões usadas pelos caipiras.
No livro “Conversas ao Pé do Fogo”, Cornélio Pires faz uma descrição detalhada dos diversos tipos de caipiras e, ainda no mesmo livro, ele publicou o seu “Dicionário do Caipira”. Na obra “Sambas e Cateretês” recolheu inúmeras letras de composições populares, muitas das quais hoje teriam caído no esquecimento se não tivessem sido registradas nesse livro.
Vou ler um poema e um causo de Cornélio Pires
Poema Sítio de Caboclo
Pouco distante da aguada,
no chapadão que além vira,
uma casinha barreada,
de uma, família caipira.
A cerca, de pau-a-pique,
logo ao chegar se depara;
ao quadro dá um quê de chic
uma porteira de vara.
No oitão da casa um poleiro,
e um leitãosinho a fuçar…
e num canto do terreiro,
uma pedra de afiar.
Do telhado sob as beiras,
o córrego de enxurradas,
formado pelas goteiras,
no, tempo das chuvaradas,
Num cocho perto da porta,
come milho um punga baio,
e um homem taquaras corta
para fazer um balaio.
E um caboclinho indolente,
que baixinho cantarola,
recostado no batente
vai penteando a viola.
Abobreiras no cercado…
vagarosa uma caipira,
tendo a peneira de um lado,
vai colhendo cambuquira.
O Causo do espêio
Cornélio Pires colecionava causos de caipira e por isso escolhi um deles:
Um grã-fino, a passeio pelo interior, alugou um cavalo e saiu percorrendo as corrutelas, indo parar na casa de um caipira. Bem acolhido, entrou e começou a examinar a sala. Ao notar que na parede havia numerosas fotografias, perguntou ao dono da casa:
– De quem é esse retrato?
– É retrato de mea mãe…
– E aquele outro?
– Aquele é meo pai…
Vendo a fotografia de um burro bem escanelado, com sete palmos de altura, arreios prateados, rédea bambeada, peitoral enfeitado, o visitante provocou:
– E esse também é da família?
– Nhor, não. Mercê tá enganado. Esse não é retrato.
– Que é então?
– Espêio…