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O Pescador sortudo e a ganância

Causo em Caiçarês

Texto de Joban Antunes 

Ilustrações  de Rubens Negrini Pastorelli

Rubens Negrini Pastorelli, artista plástico 
João Batista Antunes, poeta e escritor caiçara de Ubatuba, que deixou de ser pescador de peixes , para ser pescador de versos e causos  porque passou a ter dó dos peixes, é falante de português no dialeto caiçara. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Uma canoinha apareceu no horizonte, parecia uma casca de ovo naquele marzão. Pouco a pouco ela se aproximou da praia. Plainou na crista das ondas e deslizou mansamente em grande velocidade para o lagamar. Alguns caiçaras se aproximaram para ver o resultado da pesca. O pescador saltou da canoa que tinha, na borda escrito: “Milagrosa”, e juntos com os outros caiçaras a empurrá-la para a praia tirando-a lagamar.

Uma turista que passava na hora ficou curiosa e foi ver também.

– Quantos peixes, e enormes! Quem pescou?  foram vocês? – Perguntou a turista.

– Não Senhora, foi Osmar Dito, da praia Toninhas,  que pescou. Disse Zuzu Pirulito,  com seu ‘pirulito’ no canto da boca.

– Por que vocês os chamam assim? Eles são maus?

– Eles quem? São maus pruquê? – perguntou Zuzu Pirulito, com seu pirulito dançando na boca de um lado para o outro, mostrando seu descontentamento.

– Não sei, o senhor é que disse. Que eu saiba é que só pessoas más que são xingadas assim.

– Pelo que vejo, a Dona não entende nada dos caiçaras. Eu não xinguei ninguém.

– O senhor disse, os malditos da praia das Toninhas.

– A senhora entendeu errado, eu não disse, os ‘marditos’  da praia das Toninhas. Eu disse o  Osmar Dito, da praia das Toninhas.

– E não é a mesma coisa?

– Não Dona. – Explicou Zuzu Pirulito:

– Osmar Dito é o nome do pescadô que pegou os peixes. Os pais dele, batizaram ele de Osmar Benedito, e o povo começou a chamar de Osmar Dito. Entendeu Dona? Eu me chamo Zumbardo, mas todos me chamam de Zuzu Pirulito, pruquê em vez de cachaça, gosto muito de pirulito

– Prazer seu Zuzu, eu me chamo Néia, diminuitivo de Dulcinéia. Seu Osmar é muito bom pescador, não é?

– Bom nada, ele é um cara sortudo, como dizem por aqui, um cara com o bumbum virado pra lua. Vou chamar o Osmar Dito pra falá mais á senhora. – E chamando o Osmar – Osmar Dito,  vem cá conversá mais a Dona Néia.

– Bom dia seu Osmar, sou a Néia, muito prazer.

– Obrigado Dona Néia, também fico contente de conhecer a senhora, vai levar um peixe? Tá fresquinho, tem corvina, cavala, robalo, é só escolher.

– Vou levar sim, mas me conta essa história de você ser sortudo como o Zuzu disse.

– Conto sim. Eu era um sujeito tão azarado que não pescava peixe nenhum. Como pessoar fala,  urubu quando tá de azar, o debaixo defeca no de cima. Resorvi pôr fogo na minha canoinha e fazê outra. Zé da Lixa vendo que eu ia ponhá fogo na canoa disse:

“– Não faça isso, meu amigo. Em vez de queimá a canoa, vende ela pra eu”

“– Zé da Lixa, acha que eu vá vendê meu azar pra vancê? Te prejudicá e ganhá uns trocados em cima da sua desgraça?”

“– Ara, Cumpadre, das veiz o azar não tá na canoa, mas em vancê. Se não qué vendê, me dá. Se ela der azar pra mim,  eu mesmo taco fogo”

– Arresorvi, dona, dá a canoa prele. – Continuou Osmar Dito

– Noutro dia, bem cedinho, me embrenhei na mata atrás de uma árvre pra fazê outra canoinha pra eu. Procurei até a hora que o sol estava a pino. Devia ser meio-dia. Sentei-me embaixo de um pé de Mulungu com suas flores vermeias. Tirei um biju e um peixinho seco da sacola e comi, tomando um gole de consertada. Fique descansando e acho que drumi, pruque me apareceu um pajé com seus colares e penas de gavião e me disse:

“-O que vosmecê, homem do mar procura, está perto da sua tapera. Vorta pra casa e veja o brilho da madeira e lá estará sua sorte…

” Levantei de supetão e busquei o velho pajé. Só o pio de um nhambu me respondeu. Parecia que ele dizia: “atende o velho pajé, atende”. Atendi.

Vortei pra casa e quase chegando no eitão do meu casebre de pau a pique, vislumbrei uma árvre.  Não era um  de pé ingá amarelo, timbuíba ou cedro. Era um velho pé de guapuruvu, já bichado pelos anos, que brilhava como um diamante. Pensei,  tarvez seja essa a árvre que o velho pajé disse, mas tarvez ele esteja brilhante por quá- de- que  os raios de sol, no cair da tarde, por trás do guapuruvu, estivesse alumiando ele.  Pensei,  aminhã di minhã, quando o sol estivé doutro lado, na nascente, vou conferir se ele brilha. Encostei o machado no eitão da casa, pendurei a sacola de matulão numa ponta do caibro do telhado e fui proseá e bebê cachaça na vendinha do  seu Sodré.

– No dia seguinte, bem cedinho – continuou o seu relato, Osmar Dito,  – fui bisolhá a árvre, o velho guapuruvu. A luminosidade diminuira, mas se via um brilho deferente que vinha de dentro da madeira. Pensei com meus anzóis: “Essa é a árvre que o velho pajé falô”. Sem perdê tempo,  peguei o machado e derrubei a árvre e chamei Jeca Gago, o carpinteiro, pra fazê a canoa. O Zeca tartamudeou recusando fazê a canoa daquele pau velho, pruque na primeira onda ia se desmantelá. Falei então, faz a canoa, que a premeira pescaria eu vendo e a gaita é toda sua. Muito a contragosto Jeca fez.

Aquarela de Rubens Negrini Pastorelli – Ubatuba

– E ficou boa a canoa,  seu Osmar Dito? – Perguntou Néia, a turista.

– Uma belezura. Passou pelo quebra mar, atravessou as ondas como uma égua servagem e fomos embora.

Nem tinha eu chegado ao mar alto quando um cardume de peixe invadiu a canoa quase nos alagando. Vortei pra praia e já vendi o peixe pro seu João Vitório. Saí de novo, eu queria pegar uns sargos, robalo, garoupa, cavala, cherne que tinham mais valor. Aquela primeira pesca só peguei corvina, jangolengo, olhudo, vermelho, gonguito, piraúna.

Vortei pro mar, remando rapidinho e desviando dos cardumes pra mode poder chegá no alto mar. Quando cheguei foi só sargos, melros, chernes, até uma tintureira ficou rodando a canoa, mas fiquei com medo dela me atacá. Dei meia vorta com a canoa e arribamos na direção da praia. Vendi tudo e fui pra casa armoçar e descansá pra vortá de tarde. Do jeito que os peixes pulavam para minha canoa eu ia enricá logo logo. Deitei-me na minha tarimba de pau duro, feita de cedro e bambu japonês, e drumi. Sonhei novamente com o velho pajé que me disse:

“Filho, a ganância é a destruição dos homens. Vá só uma vez por dia, para pescar, senão o encanto da madeira vai acabar”

Acordei e desde esse dia só pesco uma vez por dia e três dias na somana. Bom dona agora eu já me vou, preciso cuidá da pescaria.

– O senhor acredita nessa história Seu Zuzu Pirulito? – perguntou Néia, a turista.

– Aquerditá mermo não sei se aquerdito, ou não. Só sei quele não pescava nada e agora tá pescando muito. Mas a Dona deve sabê que história de pescador é história de pescador. Até mais ver, boas féria.

– Até seu Zuzu, muito obrigado, abraços na família.

 

Tela em acríclico de Rubens Negrini Pastorelli

 

 

Joban Antunes

João Batista Antunes , o Joban, é caiçara nato da praia da Enseada em Ubatuba, filho e neto de pescadores, que deixou de pescar peixes para pescar versos. É poeta, escritor e apresentador do Programa de Entrevistas Balaio Caiçara da Cancioneiro

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