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As dores do parto da minha vó na escravidão

Meu avô escravizado nasceu num capinzal

Crônica de Ana Maria Fernandes]

Técnica em enfermagem aposentada, Ana Maria Fernandes , é colunista da Revista Cancioneiro Caiçara e apresentadora de programas da RCC no Facebook

Dia desses a pedido da escola de meus sobrinhos,  tentamos fazer a nossa árvore genealógica e acabamos descobrindo a história de nascimento do meu avô José . Foi assim:

A charrete sob o trote do cavalo ,engolia a estrada de terra cercada de touceiras de capim, que se confundiam com o pasto , onde o gado era solto ao anoitecer. Sá Manoela ,ou Sinhá, não se preocupava com a distância, porque o negro que conduzia a charrete sabia que tinha de chegar a casa da Fazenda logo. Ao seu lado, a negra,  Alice,  -a fiel mucama que acompanhava a fazendeira, inclusive para lhe segurar a sombrinha – permanecia quieta abraçando a barriga bem crescida, como que protegendo o bebê  que estava dando sinais de chegar. Seu rosto não traía as dores físicas que o trabalho do parto provocava. Sentia sim uma tristeza grande por saber que aquele criança seria só mais um neguinho na senzala, mais um braço no eito, nas colheitas e no manejo da enxada daquela fazenda situada no sul de Minas Gerais.

Chegando á divisa da Fazenda, Sá Manoela, a rica proprietária de terras,  achou melhor descer e ir caminhando até a casa grande. Afinal não era longe. A preta Alice  desceu com certa dificuldade, porque as pernas se lhe travavam e por isso ficava difícil mudar os passos e também porque sentia  lhe escorrer pelas pernas as águas na  a criança estivera até então, protegida no útero. A Sinhá vendo que a moça não a acompanhava, virou se pronta para dar lhe uma bronca das boas e deu de cara com a jovem agachada no capim ralo da estrada,  Na verdade,  a jovem negra estava parindo ali mesmo.

A sinhá, ainda que sem  piedade,  arrependeu- se de ter trazido a mucama naquele estado, mas já era tarde para isso. Mandou o negro da charrete a toda pressa buscar mãe Rita, a negra parteira da fazenda que cuidava das escravizados nessas horas, e que não demorou quase nada. O negro como foi, veio,  e voltou levando a sinhá, deixando Mãe Rita ao lado de Alice. Ficando só as duas ( a parteira e a parturiente), mãe Rita foi ajudando a outra até que a criança nasceu. Era um lindo  menino. Mãe Rita apertou a criança, cortou lhe o umbigo e o aqueceu nas saias ainda úmidas da própria  mãe, que aos poucos foi se recuperando e devagarinho os três chegaram à senzala, onde Alice pode descansar um pouco e amamentar o menino. Deu lhe o nome de José, que mais tarde  casou-se  com minha bisavó Ana, que teve minha avó Alexandrina, mãe de minha mãe que também era mestiça cafusa.

Escravo com banana na cabeça – Arte de Arnaldo Passos

Minha avó contava, com orgulho  como nesse dia Alice havia  sido forte .  Ela ainda pode viver ate o advento  da Lei Áurea, que libertou os escravizados  em 1888. Minha mãe Benedita, negra de mais pele clara, já  nasceu livre  em agosto de 1911.
Nessas épocas principalmente, em que se celebra Zumbi do Palmares , ou em dias comuns, a  gente se lembra do bisavô José que nasceu escravo na beira da estrada nos idos de 1800 antes da libertação da escravatura. Talvez não seja por mero acaso que eu e minha irmã mais velha nos fizemos técnicas de enfermagem e nos dedicamos à enfermagem de obstetrícia

Aninha- 20 de novembro de  2021. Valeu Zumbi!

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Ana Maria Fernandes

Ana Maria Fernandes é ativista cultural e membra de grupos folclóricos de Ubatuba, cantora da Igreja Matriz e contadora de causos

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Um Comentário

  1. Foi dolorido tentarmos levantar nossa história familiar,mas chegamos até Alice,mãe de biso José,que se hoje vivo estaria conhecendo uma de suas tetranetas,chamada Maya que nasceu há um mês. Somos eternos através das gerações que chegam.

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