Tombo de Mãe

Memórias da Ubatuba de outrora
Crônica de Ana Maria Fernandes
Ilustração de Arnaldo Passos
Minha mãe que Deus a tenha era religiosa católica ferrenha. Depois que mudamos pra uma rua mais perto da Igreja Matriz , ela não faltava com os afazeres domésticos mas tinha encontro marcado na igreja todos os os dias. Às segundas feiras era a missa das almas, às terças a missa de Santo Antônio, às quartas de São Jose, quinta não havia missa , mas havia o terço de Nossa Senhora; às sextas era a missa do sagrado Coração de Jesus, aos sábados dia de fazer a limpeza da igreja. Nesse dia ela me levava junto para tirar o pó dos bancos. Imaginem vocês quantos bancos eu, menina ainda, limpava , haja visto o tamanho da igreja Matriz. Domigo é claro era a missa especial, a missa da Irmandade do Sagrado Coração de Jesus, congregação a qual ela pertencia.
Todos os primeiros domingos do mês era a missa festiva dessa Irmandade e todas as senhoras iam vestidas a caráter. Vestido e sapatos pretos , na bolsa o véu ou filó também preto, o terço e aquela linda fita da Irmandade, a única parte do traje que era vermelha e que só se usava dentro da igreja.
Naquele primeiro domingo, mamãe saiu de casa meio atrasada e apertou o passo. Tinha que estar na igreja pelo menos uns dez minutos antes da missa começar. Quando chegou mais ou menos ali pela esquina da Rua Cunhambebe, meu irmão parou de supetão montado em sua linda e brilhante bicicleta Monark e todo prosa foi dizendo:-
-Senta aí, mamãe, que eu levo a senhora.
Desconfiada, pois nunca andara de bicicleta, mas , atrasada ela levantou a saia do vestido e sentou se no bagageiro da bicicleta. Meu irmão, achando que estava tudo certo, deu a partida num arranque . No mesmo ato mamãe virou de cambalhota caindo sentada na rua de terra poeirenta daquela manhã ensolarada . Meu irmão, ou porque não percebeu, ou porque estava com medo de levar uns sopapos, pedalou e se foi para a igreja deixando a coitada estatelada no chão. Ela, coitada, depois que olhou para os lados, apalpou-se para ver se se estava tudo bem e não se havia machucado, levantou- se altiva. Bateu a poeira do vestido preto ( arrelá, que estava tão tão limpinho, engomadinho e tão bonitinho) e rumou para igreja.
Colocou o véu, a fita e entrou, como se nada tivesse acontecido . Do outro lado meu irmão muito sério acompanhava a missa também, talvez assustado. Os dois se entreolharam, mas nem depois da missa se falaram. Ele foi para casa. Ela ficou para a reunião das senhoras e depois disso retornou à casa também. Nenhum dos dois falou do acontecido. Muito tempo depois é que ficamos sabendo da história. Foi quando, bem mais tarde, alguém a convidou de novo para andar de bicicleta e ela recusou, dizendo:
-Desde o tombo de 1964 jurei, dentro da igreja, nunca mais andar de bicicleta!
Mamãe faleceu aos oitenta e três anos e cumpriu o prometido. Tombo de bicicleta ela nunca mais tomou na vida!
Ana/ lembranças da Ubatuba de 1964
