O dia em que encarei Ramsés II: entre o caos do Cairo e a eternidade dos faraós
Um mergulho intenso na história egípcia, da cidadela de Saladino ao silêncio impressionante das múmias.

Diários do Egito
28 de maio de 2025
Cairo
Hoje saí do hotel precisamente às 09h00, quando o guia veio me buscar, junto com o motorista, para iniciarmos a programação prevista de visitas para o dia. O primeiro lugar agendado era a Cidadela de Saladino, que foi, até o século XX, o coração administrativo da cidade do Cairo.
Comentarei pouco adiante sobre a Cidadela, mas antes vou me permitir escrever sobre o trânsito caótico da cidade do Cairo. Já havia lido a respeito e também já havia visitado outros locais considerados com trânsito complicado, como Marrocos e Nápoles. Porém, não existe nada parecido com o Cairo, talvez a Índia, que ainda não conheço.
O Caos do Trânsito no Cairo
Aqui no Cairo e em Luxor – onde também saí pelas ruas centrais da cidade – é impossível dirigir, nem mesmo bicicleta ou triciclo de bebê. É um caos absoluto. Os semáforos praticamente não existem e, quando existem, ninguém sabe tampouco para que servem, pois os condutores têm convicção aqui no Cairo – como os napolitanos – creem que é um enfeite colorido. Também não existem faixas separando as pistas e tampouco faixa para pedestres atravessarem as ruas.
Mais um detalhe: a força motriz animal, quero dizer, carroças e charretes movidas pela força dos jumentos e dos cavalos deve alcançar uns 5% dos veículos aqui. Soma-se a milhares e milhares de vans que disputam passageiros nos pontos como as hienas disputam a caça, ônibus de linha, produzidos nos anos 80 do século passado, mais motocicletas, os famosos ‘tuk tuks’ indianos, que são motos triciclos que levam passageiros num banco coberto, atrás do condutor, e pedestres atravessando largas avenidas no meio desse caos.
Misture bem tudo isso e, apesar dessa mistura, não vi nenhum acidente, nenhum atropelamento. Perguntei ao Sabry, meu guia, que apesar do caos não havia visto acidentes e qual era o número de acidentes por dia, já que, na Sampa Desalmada, morrem, no mínimo, quatro motoqueiros diariamente. Ele calmamente me respondeu: porque ninguém bebe álcool em país muçulmano. Se é verdade ou não, não sei, mas achei a explicação bem plausível e paro por aqui meus comentários sobre o trânsito com um aviso para meus amigos e amigas que pretendam vir um dia ao Egito. Não se metam a besta e tentem alugar um carro. Aqui o trânsito é para profissionais, não amadores.
A Cidadela de Saladino: História e Vistas Panorâmicas
Bem, voltando às visitas programadas para hoje, a primeira foi a Cidadela de Saladino, construída no século XII como uma fortificação para proteger a cidade dos cruzados cristãos, tornando-se um lugar seguro onde se estabeleceria a residência real. A Cidadela foi construída num promontório mais alto da cidade de onde tem-se uma vista panorâmica da cidade do Cairo com seus 22 milhões de habitantes. A estrada que dá acesso à Cidadela segue paralela a um aqueduto construído para levar água do Nilo até essa antiga fortificação medieval.
Saladino foi o grande herói do mundo árabe, pois derrotou os Cruzados e os Cavaleiros Templários, tomando de volta, para os muçulmanos, o controle da cidade de Jerusalém. Também tomou como prisioneiro Ricardo Coração de Leão, aquele irmão do rei João Sem Terra, lembram? O rei que perseguia Robin Hood, lembram? E, dizem as más línguas, que Saladino chegou a ter um ‘affair’ com a mãe de Ricardo, Leonor da Aquitânia, que acompanhou o filho até as Cruzadas e não era nenhuma santa.
Saladino mandou construir essa fortificação para evitar invasão de novas investidas dos Cruzados. A parte externa da fortificação está intacta, mas internamente o que se destaca é a mesquita mandada construir por Muhammad Ali Pasha, que governou o Egito e o Sudão como governador otomano de 1805 a 1848. Ele também é conhecido por iniciar a dinastia Muhammad Ali e modernizar o Egito.
A Mesquita de Muhammad Ali e um Obelisco Curioso
A mesquita é uma réplica da Mesquita Azul de Constantinopla. Portanto, para quem conhece a Mesquita Azul, da atual Istambul, vai achar as fotos que postarei semelhantes. Apenas as luzes que iluminam o amplo espaço de oração não são azuis. A diferença dessa mesquita para a de Istambul é que essa aqui foi construída toda em alabastro.
Aproveito para lembrar um fato curioso. Em Paris há um obelisco egípcio – gêmeo do que está faltando no templo de Luxor – localizado na Place de la Concorde. E hoje está mais visível porque, depois de décadas, retiraram aquela horrorosa roda gigante que obstruía a visão do obelisco. Pois muito bem. Esse obelisco foi trocado por Muhammad Ali, com o governo francês da época, por um relógio que está instalado no alto da mesquita e que nunca funcionou.
Agora, um aviso: esse Muhammad Ali não tem nenhum parentesco com o Cassius Clay que adotou o nome do antigo rei do Egito, quando se converteu ao islamismo, depois de sair da prisão por ter se recusado a lutar e morrer no Vietnã. Lembram da letra “Era um ragazzo…”
O Museu Nacional da Civilização Egípcia e o Desfile de Ouro dos Faraós
Saímos da Cidadela e a próxima parada era o Museu Nacional da Civilização Egípcia que, a princípio, não estava com muita vontade de ir, já que tem momentos que visitar muitos museus cansa o corpo e a mente. Estava enganado. O museu foi inaugurado oficialmente em 3 de abril de 2021. Alguém se recorda de uma imensa procissão, transmitida ao vivo pelas redes de televisão para todo o mundo, mostrando o cortejo de 22 múmias, incluindo 18 reis e quatro rainhas, do Museu Egípcio, no centro do Cairo, para esse moderno museu. Esse evento ficou conhecido como ‘Desfile de Ouro dos Faraós’. O museu exibe uma coleção de 50.000 artefatos, apresentando a civilização egípcia desde os tempos pré-históricos até a era moderna.
Nunca havia ficado de cara a cara com uma múmia como aqui. As 22 múmias estão distribuídas no subterrâneo do museu imitando uma cripta, o piso e as paredes todos em granito negro, e as múmias dentro de caixas de vidro com iluminação direta. O efeito é impressionante e, de repente, me vi cara a cara com Ramsés II, o mais poderoso Faraó da história do Antigo Egito. Você pode ver as feições, os pés e, curiosamente, seu braço direito está meio erguido. A conservação do corpo humano é impressionante e, por algum motivo que não sei qual, a pele é totalmente enegrecida como se tivesse sido calcificada. Todas as múmias são assim, com aparência calcificada, mas os cabelos estão conservados. Tentei alguma comunicação com Ramsés II, mas foi inútil.
O Bairro Copta e a Igreja de São Sérgio
Bem, saindo do museu, poucos quilômetros adiante, entramos no bairro copta, antigo bairro cristão. Aliás, pelo que me informaram, você não irá encontrar vestígios medievais aqui no Cairo, à exceção do bairro copta, onde localizam-se várias igrejas cristãs e pálio cristãs. A mais importante delas – para quem é seguidor da doutrina cristã – é a igreja de São Sérgio, construída entre os séculos III e IV. A importância dessa igreja deve-se ao fato que, abaixo do altar, você desce por uma escada para uma cripta onde a tradição diz que foi aqui que a Sagrada Família, isto é, Maria, José e Jesus bebê, se refugiaram durante três anos e oito meses, fugindo da perseguição de Herodes.
Os guias insistem em dizer que foi aqui, nesse lugar, que Jesus Cristinho começou a engatinhar e deu seus primeiros passos. Eu já prefiro o Jesus Cristinho que ensinou a rir dos reis e dos que não são reis, como dizia Fernando Pessoa.
O bairro copta é, portanto, a parte do mundo antigo cristão. Todo o restante que existe por aqui, pelo menos para nós turistas, vai ressurgir a partir do século VI da nossa era, quando os emissários do profeta Maomé saíram da península arábica e vieram para cá islamizar a população. Lembrando que no Egito entre 10 a 15% da população é cristã copta.
Desistência do Mercado e Aviso Final
Havia agendado com Sabry ir à tarde passear pelo famoso mercado do Cairo. Já vi mercados suficientes pelo mundo afora e no Brasil, em particular. Adoro fotografar mercados e inclusive já fiz exposição de fotos só sobre mercados pelo mundo. Desisti. O calor aumentou e um septuagenário tem que se cuidar para amanhã enfrentar viagem de carro até Alexandria nesse tráfego caótico que é por aqui.
Post Scriptum: esqueci de escrever. Não é permitido fotografar as múmias.
Amanhã tem mais.