Texto, vídeo, apresentação de Marcus Vinicius Ozores
Diário do Fim do Mundo, sexta-feira, dia 29 de abril do ano de 2022 e eu sigo na minha Sampa Desvairada , com tempo nublado lançando as minhas granadas de indignação com ‘Só a poesia nos Salvará’.
Era janeiro de 1964 e eu tinha acabado de completar 12 anos quando, pela primeira vez, eu tive contato com uma biblioteca acadêmica residencial.
Eu havia ficado de segunda época, como se chamava então a recuperação de aula, no curso de francês do IEBA, aluno da dona Fanny, professora que ensinou uma legião de jovens em Araraquara. Eu teria dois meses entre dezembro e janeiro para estudar e fazer a prova da segunda época, no início de fevereiro. Se fosse aprovado passaria para o ano seguinte, caso contrário repetiria a primeira série do ginásio.
E para estudar, fui enviado para a casa do irmão caçula da minha mãe, o Luiz, que havia se casado, no ano anterior, com Maria Célia Beraldo, a Celinha, recém-formado na PUC Campinas, em Português e Francês.
Eles eram de Boa Esperança do Sul, recém-casados, mudaram-se para Maringá que, no inicio dos anos 60, era uma vila pequena e que tinha de vida, a minha idade.
Foi na casa deles que vi a primeira biblioteca acadêmica da minha vida, composta pelos livros que Celinha havia trazido de Campinas para Maringá.
Eu fiquei em Maringá mais de um mês, que foram os melhores dias da minha vida de jovem, meio criança meio adolescente. Pela manhã e à tarde, Celinha me ensinava francês e me apresentava pacientemente à literatura brasileira. O primeiro livro que li, por sua orientação, foi Macunaíma, de Mário de Andrade. Coincidência é que Macunaíma foi escrito por Mário, em Araraquara, numa temporada que ficou na casa do primo, Pio Lourenço.
Nos finais das tardes daquele verão abrasador de Maringá, eu , a Celinha e o tio Luiz, íamos os três para o Country Club, onde eu ficava três horas sem sair da piscina, o que me valeu uma sinusite crônica que carrego até hoje.
Quarenta dias depois das aulas diárias de francês, eu estava de volta a Araraquara e nem preciso dizer pra vocês que tirei 10 com dona Fanny.
Foi a Celinha também que me presenteou, num Natal, com a primeira edição, em português, de ‘Cem Anos de Solidão’ de Gabriel Garcia Marques e me introduziu ao realismo mágico, aliás, romance fundamental para compreendermos a realidade latino-americana, até os dias atuais.
Celinha partiu ontem, no dia em que completou 82 anos, e, a seu pedido, foi cremada na tarde de hoje, na sua amada Maringá, onde foi uma das primeiras professoras da recém-inaugurada, da Faculdade de Letras da Universidade Estadual de Maringá, em 1970. Descanse em paz tia Celinha. Tenho um pedido para que você: ensine aos anjos tudo que ensinou para mim e apresente a eles Macunaíma, o nosso herói sem caráter.
E para me despedir da minha tia querida selecionei um poema de Mário de Andrade que fala sobre o mês de abril e sobre a morte. O poema é:
POEMAS DA AMIGA
A tarde se deitava nos meus olhos
E a fuga da hora me entregava abril,
Um sabor familiar de até-logo criava
Um ar, e, não sei porque, te percebi.
Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.
Estavas longe, doce amiga, e só vi no perfil da cidade
o arcanjo forte do arranha-céu cor de rosa,
mexendo asas azuis dentro da tarde.
Quando eu morrer quero ficar,
não contem aos meus amigos,
sepultado em minha cidade,
Saudade.
Meus pés enterrem na rua Aurora,
no Paissandu deixem meu sexo,
na Lopes Chaves a cabeça
esqueçam.
No Pátio do Colégio afundem
o meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
bem juntos.
Escondam no Correio o ouvido
direito, o esquerdo nos Telégrafos,
quero saber da vida alheia
Sereia.
O nariz guardem nos rosais,
a língua no alto do Ipiranga
para cantar a liberdade.
Saudade…
Os olhos lá no Jaraguá
assistirão ao que há de vir,
o joelho na Universidade,
Saudade…
As mãos atirem por aí,
que desvivam como viveram,
as tripas atirem pro Diabo,
que o espírito será de Deus.
Adeus.