Os Diários do Ozores

Crônicas da Janela Parisiense: Um Dia, Uma Gata e Um Universo

Entre Tabacarias e Silêncios: Reflexões de um Exílio Voluntário

Um dia comum no bairro

Bon jour à tous!

Ontem não saí dos arredores do apartamento. Foi dia de ir ao supermercado para abastecer a geladeira para o final de semana. Aproveitei e fiz uma fezinha na Euromilhões, que estava acumulada em 125 milhões de euros!!!!

As lojas que vendem tabaco — leia-se cigarros e correspondentes — são onde você faz aposta na Euromilhões e nas inúmeras outras loterias existentes na França. Também é na tabacaria onde você encontra jornais e revistas.

Bem, fiz compras e coloquei-as todas na mochila para melhor distribuir o peso. Afinal, do apê ao supermercado são mais de mil metros de distância e ainda tenho que descer e subir escada para o primeiro andar. Quando se é jovem, não tem problema. Porém, passado dos setenta, você começa a enfrentar algumas dificuldades. E isso também não interessa.

Na volta, parei para fotografar alguns cafés vizinhos com mesas nas calçadas ocupadas e flores pequenas, mas com colorido exuberante.

Tarde de descanso

Passei o dia fazendo pequenos trabalhos domésticos sabendo que, do lado de fora da janela do apê, está Paris. Assim como, do lado de fora da janela do meu, no Brasil, está Sampa. Mas tem aqueles dias que a gente não quer sair da nossa toca de jeito nenhum, ainda mais da nossa poltrona preferida.

E aqui, nesse apezinho, em Paris, tenho à disposição um sofá colocado junto a uma imensa janela envidraçada, com mesinha de centro para esticar as pernas. Nada melhor do que não fazer nada e simplesmente ver o tempo passar.

Aliás, não sei por que usamos a expressão “ver o tempo passar”. Afinal, não vemos o tempo, mas sentimos… ou será que não?

O chamado da escrita

Até ontem, no final da tarde, havia decidido, com meus botões, que hoje não iria redigir nenhuma linha desse diário a que me propus. Porém, ofício de escrevinhador é escrever, já que a escrita é uma forma de alimento para nos manter vivos — e é alimento para a alma.

O dia já começava a se despedir lentamente quando, no apartamento vizinho, a Fifi foi furando o bloqueio formado pela beque central da sua dona, atravessou o meio do campo, invadiu a área e Pam! Pam! Pam! Pam! Apareceu na janela do apê daquela vizinha, com cigarrinho na boca.

Fifi me olhou, sorriu pra mim, assim como o Esteves — aquele, o dono da Tabacaria — sorriu para Álvaro de Campos, e eu sorri para ela.

Coincidências curiosas

E o mais curioso — e acho que acontece com todos nós, viventes — é que, quando você está pesquisando, lendo ou assistindo a um filme sobre determinado tema, parece que tudo que você abre ao acaso, seja a página de um livro ou busca na internet, te leva ao tema que você está interessado naquele momento.

Pois não é que um amigo querido me enviou o link de uma entrevista de Julio Córtazar, o escritor argentino que revolucionou a literatura latino-americana com Jogo da Amarelinha.

Clique aqui para ver a entrevista

Córtazar, que abandonou definitivamente Buenos Aires por Paris em 1952, quando Perón assumiu o governo, costumava dizer que, ao se mudar para a capital francesa, conheceu os três amores de sua vida: três mulheres deslumbrantes, inteligentes e elegantes. Mas em Paris também conheceu seu gato. Seu gato preferido e inspirador de muitos de seus textos se chamava Theodor Adorno, um dos filósofos de que mais gostava.

Ao longo da história, você vai se deparar com milhares de nomes de homens e mulheres que ocuparam cargos importantes na vida e que eram amantes de gatos. Provavelmente, Cleópatra tinha seu gato de estimação, mas Hemingway acho que foi o mais apaixonado, chegando a ter mais de 50 em sua casa em Havana.

Um toque de saudade felina

Eu, aqui na minha minúscula bolha parisiense, penso nas minhas gatas sozinhas em Sampa e até penso em telefonar para elas, para saber se estão bem. Mas um detalhe me impede: ainda não inventaram um celular pequenininho para gatas. Isso é triste. Acho que é um ramo promissor para investimento e terá muitos interessados.

Epílogo poético

Bem, se em Tabacaria, o heterônimo de Fernando Pessoa encerra o poema — não diria trágico, mas desesperançoso:

 

“Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo

Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança

e o Dono da Tabacaria sorriu.”

O meu dia ontem, que passei enclausurado no apê, ao rever a Fifi,

“O universo me ressurgiu cheio de ideal e de esperança.”

Amanhã tem mais.

Marcus Ozores

Marcus Vinicius Pasini Ozores é fotógrafo, jornalista, apresentador de TV , mestre em Ciências Sociais e Pesquisador Associado na UNICAMP

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Um Comentário

  1. A cena da Fifi furando o bloqueio da dona e aparecendo na janela foi sensacional. A dona, com o cigarrinho na boca, parecia distraída, e Fifi, cheia de atitude, invadiu o território como quem sabe que é a estrela do pedaço. Naquele instante, foi impossível não lembrar do Julio Córtazar, que amava gatos e sabia que esses bichanos têm o dom de virar literatura viva. Fifi, com seu jeito felino e decidido, trouxe um sopro de poesia pro dia — daquele tipo que só os gatos (e os bons escritores) sabem provocar.

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