Os Diários do Ozores

Navegando entre vivos e mortos no coração do Egito

Das brumas do Cairo às águas do Nilo

23 de maio — Assuã

Partida do Cairo: da metrópole à memória

Deixei o hotel no Cairo exatamente às 12h00, quando o guia, contratado pela agência, foi-me buscar e deixar no aeroporto para embarcar num voo doméstico de hora e meia, com destino à cidade de Assuã.

Cairo é a maior cidade de toda a África, com população estimada em mais de 22 milhões de habitantes distribuídas pela cidade e as quatro outras que formam a Grande Cairo. Os números do Egito não são nada bons em se tratando de distribuição de renda. Quarenta por cento da população é analfabeta e a pobreza é gigantesca. Ainda não pude presenciar de perto essa pobreza, através dos meus olhos, mas apenas à distância, como hoje, durante o trajeto de 22 km que separa o hotel do aeroporto.

Pelas janelas da van: retratos da desigualdade

No caminho, visto pela janela da van, você pode ver as vielas que dão acesso para as aglomerações urbanas não muito diferentes daquelas que você ainda encontra ao lado das marginais, na nossa Sampa Desvairada.

Passei ao largo da chamada ‘Cidadela’, construída em homenagem a Saladino, o herói muçulmano que derrotou os Cruzados e os Cavaleiros Templários, retomando definitivamente o controle de Jerusalém no século XIII.

Poucos quilômetros à frente, do lado direito de quem vai em direção ao aeroporto internacional do Cairo, passei defronte à ‘Cidade dos Mortos’, que já conhecia através dos livros do egípcio Naguib Mahfouz, prêmio Nobel de Literatura — mais especificamente nas páginas de O Ladrão e os Cães, que trata da vida de um pequeno ladrãozinho de rua que mora em um túmulo.

Cidade dos Mortos: vivos entre os túmulos

A Cidade dos Mortos, como é conhecido o cemitério da cidade, construído em meados do século VII, ocupa uma área de 10 quilômetros ao lado da rodovia. Com o passar dos anos — e dos séculos — conforme a população pobre foi aumentando na capital e sem ter onde morar, passaram a ocupar primeiro os jazigos, e depois começaram a construir casas entre os túmulos do cemitério.

Não existe uma estatística precisa, mas estima-se uma população permanente e flutuante entre 500 mil a 1 milhão de pessoas. Da janela da van onde estava, consegui fotografar, mesmo que com qualidade baixa, as construções nessa imensidão de almas vivas e mortas que dividem o mesmo espaço como numa eterna luta entre os viventes e os ausentes.

Deslocamento: atrasos e brumas

O dia de hoje foi praticamente perdido em trânsito: café da manhã, arrumar malas, fazer check-out, aguardar o guia, van, descer na área de embarque, despachar bagagem e esperar… e esperar.

O voo atrasou mais de duas horas e acabou saindo do aeroporto do Cairo às 16h00. Hora e meia depois, desembarcava no aeroporto de Assuã.

O Egito na neblina da poluição

Devo ainda explicar mais um detalhe: no Cairo — e em todo o Egito — chove muito pouco. Portanto, se você adicionar a esse caldo a concentração de 22 milhões no Cairo e os outros 90 milhões de pessoas distribuídas pelas duas margens estreitas ao longo do Nilo, o resultado é uma poluição gigantesca.

Tanto a visão do 14º andar do hotel onde estava hospedado como do alto da janela do avião: a imagem tanto do céu como da terra tem sempre um embaçamento causado pela bruma da poluição.

Tirei algumas fotos aéreas do deserto sem fim e da chegada a Assuã, passando por cima da imensa barragem — que já foi a maior do mundo — construída pelo lendário Gamal Abdel Nasser nos anos 1950. Na minha infância e juventude, a imagem de Nasser como um dos líderes dos então chamados países em desenvolvimento ocupava sempre as capas do Cruzeiro e da Manchete.

Chegada a Assuã: recepção informal

Chegando em Assuã, um simpático Mohammed já me aguardava no saguão de desembarque providenciando o recolhimento da mala. Não me pergunte como, mas aqui pode tudo nos aeroportos e todo mundo entra nos saguões que no resto do mundo o público externo não pode entrar sob nenhuma hipótese, correndo o risco de serem presos.

O Nilo, os barcos e um sonho de infância

Uma distância de 25 km separa o aeroporto do cais, no Nilo, onde estão os barcos de passeio com capacidade de até 100 pessoas que, durante três dias, subirão e descerão o lendário rio que Heródoto, no século IV a.C., já apontava como a maior fonte de riqueza do Egito.

Amanhã deverei visitar a ilha das terras dos Núbios, que habitam uma ilha desde tempos imemoriais e hoje ficam dentro da represa de Assuã. Outras visitas estão previstas, mas ainda não tomei ciência de quais serão e espero surpresas.

Viajar pela imensidão do Nilo, na minha idade, é como realizar um sonho de infância, quando me imaginava um Faraó. Gozado é que a gente nunca sonha em ser um escravo que carrega pedra para levantar pirâmide. Nos nossos sonhos, sempre somos majestosos.

Estou lendo também as memórias de D. Pedro II sobre sua viagem ao Egito.

Noite no catamarã: silêncio e expectativa

Às vinte horas em ponto, desci do quarto para jantar e, quando entro no refeitório, me deparo com um salão com capacidade para bem mais de cem pessoas, com apenas nove presentes. Compartilharei essa viagem com mais 9 pessoas, tendo um guia para cada duas à disposição.

Acabo de escrever esse meu diário no bombordo do catamarã, tendo à minha frente outros barcos ancorados e a cidade de Assuã.

Amanhã tem mais.

Marcus Ozores

Marcus Vinicius Pasini Ozores é fotógrafo, jornalista, apresentador de TV , mestre em Ciências Sociais e Pesquisador Associado na UNICAMP

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