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Memórias da Catástrofe Caraguá de 1967, Nadei pra não morrer

Dorcas Nascimento é assistente social e colunista da Cancioneiro

 

 

Uma crônica histórica pessoal vivida e escrita por  Dorcas Nascimento*

Dia 18 de Março de 1967,  fomos dispensados da escola mais cedo porque  chovia sem parar. Ninguém imaginava o que estava por vir. Em casa vi que os mantimentos já haviam sido danificados pelas águas. Deitei-me com fome, a chuva não parava.
Não demorou muito ouvi as pessoas gritando:

— Vamos sair daqui! O morro está desabando!

Um caminhão da Prefeitura chegou e as pessoas desesperadas subiam no caminhão. O mundo estava acabando, pensei.

Flagelados de 1967 II- Foto Arquivo P. Arino S. Barros

Como nós éramos vários irmãos, foi um sufoco pra minha mãe, além disso havia alguns sobrinhos que estavam em casa. Lembrei-me da dona Victória, uma velhinha que morava sozinha, e era nossa vizinha. Fui até lá e a puxei pela janela. Apesar de gorda, a água deixou-a mais leve. Arrastei ela até o caminhão. Eu não conseguia subir, porque já estava super lotado.

Nadar ou morrer?

Ouvi minha mãe gritando que faltava minha sobrinha de 4 meses, a Júlia. Então, eu que fiquei pra trás. Minha irmã Gemima foi arrastada pela correnteza e perdida de vista. Eu tentava nadar, mas a correnteza era muito forte e me arrastava. Segurei num pé de mamão e tentei me salvar. O medo era grande. Via troncos de árvores sendo arrastados. São imagens que jamais consegui esquecer.

A natção que aprendemos no mar me salvo – Arte ARnaldo Passos

Ao passar pelo Empório Anchieta, vi três filhos da dona Maria, o Nilton, o Nivaldo e o Nelson , gritarem. Eles estavam em cima da laje. Diziam “você consegue Dorcas!”. E aí olhei para o Céu e pedi pra Deus me salvar. Disse pra Deus naquele momento: “me salve, meu Deus, quero estudar e ajudar as pessoas! Me salve, e salve minha família”. Já não sabia onde eles estavam e pra onde tinham ido.

Desespero

O desespero tomou conta de mim. Senti-me impotente, abandonada. Mesmo assim consegui forças pra lutar contra a correnteza.
Quando consegui chegar perto da casa da família Prado, ouvi as pessoas me chamarem. Eles  entraram num sobrado de moradores de temporada e ali se abrigaram. Fui para lá.

Dorcas-Nascimento-poucos anos depois-da catástrofe -67

A noite foi longa. Sem água e sem comida, sem notícias da minha irmã e da minha sobrinha. O restante da família estava ali. Encontraram pão embolorado e foi o que, alguns de nós comemos. Assim diminuiu a fome.

O Socorro chegou

A ajuda chegou no dia seguinte e fomos encaminhados para o Grupo Escolar, hoje museu Adaly Coelho Passos. Minha sobrinha foi salva por uma família que entrou em casa e a pegou. Minha irmã foi parar na padaria San Remo onde foi resgatada com vida. Foi muita sorte, pois entre a Rua Pedro Lippi, onde era a nossa casa, e esta padaria, era um caminho bem distante.

Quando fomos instalados na Escola, hoje Adaly, eu ficava separando as doações de roupas por tamanho, com outras pessoas e também dava banho nas crianças que chegavam cheias de lama.

Doações para os flagelados – Foto APMCArquivo

Lembro-me de uma menina de três anos que ficou soterrada por três dias. O pessoal do Exército que a encontrou durante as buscas. Ela falava que tinha visto um boi muito grande que queria comê-la. Os pais estavam procurando por ela, já tinham perdido a esperança, eu a reconheci e os avisei. Eram nossos vizinhos. Foi uma história com final feliz, foi muito emocionante o encontro. Eu nunca esqueci. Minha irmã Abigail saía de Helicóptero com os soldados para a fazenda dos Ingleses e outros lugares de difícil acesso para vacinar as pessoas contra o tifo.

LEIA TAMBÉM DA CATASTROFE DE 1967 -NILO SOBREVIVEU A CATÁSTROFE COM POESIA

Perdemos tudo, mas não a força que nos fez reconstruir e vencer

Enfim, ficou uma lição: da noite para o dia perdemos casa, a nossa quitanda, plantações de banana do meu pai, e a nossa fabriquinha caseira de doces que fazia sucesso em nossa cidade. Porém, ganhamos muito, nenhuma vida da minha família foi perdida. Tornamos-nos flagelados de uma catástrofe e passarmos por muitas dificuldades, mas mamãe dizia: “estamos todos vivos” e nunca nos importamos pelos bens materiais perdidos. Recomeçamos e vencemos.

Eu tinha 14 anos, hoje tenho 69 . Ah! Consegui estudar,  sou Assistente Social aposentada. Cumpri meu pacto com Deus, ou melhor, ainda estou cumprindo. E até enquanto viver estarei pronta para dar amor, apoio e ajudar quem precisa com os conhecimentos que adquiri. Tenho quatro filhos, dez netos e bisneta. Obrigada a Deus por eu ter hoje o suficiente para viver.

O Coletivo caiçara de São Sebastião está ajudando desabrigados de todo litoral norte
  • Dorcas Nascimento é Assistente Social aposentada da Prefeitura de São Jose dos Campos. cronista . apresentadora e Contramestra Proeira da Cancioneiro para Caraguatatuba
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Dorcas Nascimento

Dorcas Nascimento é caiçara de Caraguatatuba, poeta e Assistente Social

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