Os Diários do Ozores

Reflexões à Sombra dos Bancos de Rua e Memórias de um Mundo em Colapso

Bon jour à tous!

Segunda-feira: Dia da pausa

 

Ontem foi segunda-feira aqui em Paris — e em todos os lugares. E segunda-feira, em qualquer lugar, é aquele dia em que a maior parte dos museus, espetáculos, entradas em monumentos públicos etc. etc. etc. estão fechados. Segunda-feira é dia dedicado à arte de chutar tampinhas pelas ruas e andar meio sem rumo, se você estiver aposentado, como eu, é claro.

Como era segunda, fui cedinho ao supermercado para umas comprinhas e aproveitei para ir à tabacaria fazer minha fezinha semanal na Euromilhões, acumulada em 138 milhões de euros (não de reais!). Fiz até figa na hora de escolher os números e senti os dedos do pé também se esforçarem para se cruzar — mas foi uma ação impossível de se realizar.

Bancos de rua: um luxo parisiense

 

Saindo da tabacaria, sentei num dos bancos espalhados pelas ruas para observar, do outro lado da calçada, uma senhora também sozinha. Me pus a pensar sobre a importância dos bancos de rua que nos foram roubados no Brasil, em nome da violência e do vandalismo.

Hoje, esses bancos espalhados ao longo das calçadas aqui em Paris são inexistentes no Brasil — os que ainda resistem estão no interior dos parques e das grandes praças. Você, como cidadão, não encontra nenhum banco de rua no centro de São Paulo, tampouco nos bairros. O que sobrou são três ou quatro lugares nos pontos de ônibus. Nem mesmo no metrô paulistano ou carioca existem bancos para se sentar.

E penso: sem banco, as pessoas não conseguem ter um momento para si, que permita, solitariamente, uma reflexão profunda sobre o ser — mesmo que por alguns momentos roubados de um cotidiano massacrante.

Tudo no Brasil não pode, nem nunca pôde dar certo em decorrência do vandalismo e da violência. Nós, a tal da população brasileira, estamos anestesiados com esse veneno da violência e do vandalismo e nos recolhemos para dentro de nossas ostras cada vez mais.

Escrevo essa pequena reflexão porque sou usuário do transporte coletivo e de longuíssimas caminhadas na minha amada Sampa Desalmada. Meu carro só sai da garagem para compras no supermercado, para minha amada República Livre Anarquista dos Tupinambás de Barequeçaba, ou para reuniões na Unicamp, uma ou duas vezes por mês.

Caminhar é resistir

 

Nem preciso dizer, então, que Paris — uma cidade plana, com ruas largas e calçadas ainda mais largas — tem a vantagem de ser arborizada. E Paris, na primavera, com céu azul e temperaturas amenas, te convida a caminhar.

E ontem o único compromisso do dia era um encontro para café com uma professora da École des Hautes Études en Sciences Sociales, que ficou viúva recentemente, aos 79 anos. Encontro marcado às 17h00, num café na rue de Cherche-Midi, local velho conhecido.

Pensamentos cruzados: história, guerra e caipirinha

 

Saí do apezinho e peguei o metrô linha 6 até a estação Raspail. Desci para caminhar uns 2 km até o ponto marcado. Na caminhada lenta, vim pensando na beleza dessa cidade; nos 80 anos do final da II Guerra, comemorado no último 2 de maio; e na passeata dos neonazistas aqui em Paris, no último sábado.

Tudo junto e embaralhado — como numa bela caipirinha. Explico: quando você coloca limão, açúcar, espreme, põe gelo e depois mexe, aquilo no copo não é mais pinga nem suco de limão doce. É caipirinha — um produto novo.

Assim como agora: de um lado, festividades comemorando a vitória sobre os nazistas; de outro, jovens carecas com máscaras, irados, pedindo a volta do nazismo. E não estamos mais em 1939.

Paris salva por um general desobediente

 

Pois muito bem. Os turistas que hoje vêm admirar a beleza de Paris, visitar os pontos turísticos e fazerem selfies aos bilhões, não sabem que essa cidade poderia estar debaixo de cinzas há exatos 81 anos.

No dia 19 de agosto de 1944, quando o Terceiro Exército Americano, com os membros da resistência francesa, tomaram as ruas de Paris, a cidade deveria ter ido para os ares. O general Dietrich von Choltitz, por ordem direta de Adolf Hitler, havia colocado bombas nos principais pontos turísticos e tinha ordens expressas para detoná-las quando os aliados entrassem na cidade.

Choltitz desobedeceu ao chefe supremo — e a Cidade Luz está aí até hoje, linda e limpa, para que os turistas do mundo inteiro possam visitá-la, principalmente os turistas franceses.

Ainda bem que Choltitz não se embriagou no dia da invasão de Paris, como fez Alexandre, o Grande, após conquistar Persépolis — a mais linda cidade que o mundo jamais viu. Alexandre mandou queimá-la, e depois chorou copiosamente pela atitude irresponsável que havia tomado.

Memórias e encontros

 

Meus pensamentos foram interrompidos quando passei em frente à sede mundial da Aliança Francesa, aqui em Paris, no Boulevard Raspail. O lugar me trouxe boas lembranças de quando aqui estudei, há quase um quarto de século. O prédio continua o mesmo, e o teatro com atividades permanentes.

Aqui conheci e fiz amizades temporais com pessoas de boa parte do mundo — foi um jeito de conhecer costumes diversos nas conversas das cantinas.

Desci o boulevard até a rue du Cherche-Midi e encontrei minha amiga. Conversa boa, tristes lembranças. Conversas necessárias e inevitáveis depois que passamos das sete décadas de existência. Nesses momentos, pensamos nos que partiram velhos e, principalmente, naqueles que partiram jovens — antes da hora, como costumamos dizer.

Sentado numa mesinha na calçada, escutei um grito — e quase que uma senhora foi atropelada por uma bicicleta. Minha mente vagou e me lembrei da primeira crônica assinada de minha autoria, para o jornal em que trabalhava, nos idos de 1970.

A crônica foi sobre a morte de uma mocinha, de uns 17 anos, vítima de atropelamento a poucos metros da varanda do restaurante onde almoçava — perto do trevo da saída de Campinas, o antigo Palácio do Chopp, que não existe mais há décadas. Ouvi um barulho forte e, ao virar a cabeça, vi o corpo da moça rodopiar no ar, passar por sobre o automóvel e cair no chão.

A vida não tem hora marcada para se despedir.

Fim de tarde e despedida

Acabamos o café. Cada um foi para um lado. Começava a chover.

Amanhã tem mais.

Marcus Ozores

Marcus Vinicius Pasini Ozores é fotógrafo, jornalista, apresentador de TV , mestre em Ciências Sociais e Pesquisador Associado na UNICAMP

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo