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Saudades de um país – por Bolívar Lamounier

A análise do Brasil, por Bolívar Lamounier, um dos nossos maiores cientistas políticos

Bolivar Lamounier *

(Especial para Cancioneiro Caiçara)

Décadas atrás, na minha infância mineira, nosso PIB era menor, havia menos estradas asfaltadas e os serviços de saúde eram bem piores. Mas não me lembro de ter visto gente comprando ossos para fazer sopa ou catando alimentos no lixo.
Saudades do Brasil de décadas atrás? Não, dizer isso é exagerar muito. Mas abstenho-me de pôr uma interrogação após o título para que algumas dúvidas possam pairar sobre nossa conversa.
Por favor, não me venham dizer que o panorama relativamente aceitável de nosso país décadas atrás se devia ao fato de a maioria da população viver no interior, em pequenas cidades e em áreas rurais. O cenário de minha infância foi o do interior e das áreas rurais. E embora seja certo que os serviços de saúde eram piores, a educação teve um bom começo. Diversas cidades do interior tinham ótimas escolas primárias, que começaram a ser implantadas desde os anos trinta; nos anos cinquenta, o nível secundário começou a ser moldado por colégios públicos estaduais de excelente qualidade. Entre os formuladores da política educacional, tivemos vários grandes nomes, gente culta e visionária – artigo que desde então se tornou extremamente raro.
A política era pior que hoje? Vivíamos à mercê de “coronéis” (em sentido figurado, já se vê, porque o termo designava fazendeiros, profissionais liberais e até padres influentes no âmbito dos municípios)? A mitologia que a esse respeito se propagou a partir dos anos cinquenta levará décadas para ser desfeita. Havia ladrões, é óbvio, mas nada que se compare aos “centrões” de hoje em dia, muito menos ao aparelhamento e à pilhagem do Estado (remember Petrobrás), e menos ainda a indivíduos excluídos das Forças Armadas por indisciplina. Em Minas Gerais havia um caso folclórico, o de José Maria Alckmin, que chegou a ser ministro da Fazenda, tido como desonesto. Eu, por acaso, tive ocasião de conhecê-lo quando cursava o colegial. Minha casa era relativamente próxima à dele, na avenida do Contorno, quase em frente ao Colégio Padre Machado. Certa vez ele me recebeu para uma longa entrevista. Posso atestar que ele não vivia numa mansão como uma recentemente adquirida em Brasília por um membro do clã que ora controla o Palácio do Planalto.
Quando, como e por que fomos para o brejo? Se quisermos tratar o assunto com alguma seriedade, o ponto de partida é muito simples. A economia (medida pelo PIB) cresceu muito, mas a população urbana cresceu muito mais rapidamente. A economia cresceu com base em grandes empresas, principalmente industriais, que atraíram para as cidades imensos contingentes de mão-de-obra analfabeta ou semianalfabeta , o que desde logo impossibilitava a oferta de habitações e a implantação de serviços na quantidade e com a qualidade suficiente. Empresas médias e pequenas, com base nas quais a miséria pudesse ser paulatinamente erradicada, nem a burguesia endinheirada nem os tecnocratas que formulavam as políticas de governo cogitaram favorecer.
Um retrospecto das artes pode nos servir como uma boa ilustração para a nossa história. Antes da migração em massa dos anos cinquenta, nossos melhores poetas e compositores conseguiam se referir às nascentes favelas com certo lirismo; aqui e ali uma fresta de protesto, mas a nota dominante era o lirismo. O que começava a chocar-lhes a sensibilidade não eram ossos ou pedaços de carne catados no lixo. Era o zinco que cobria o teto dos barracos. Na linda canção Chão de Estrelas, de 1937, Orestes Barbosa e Sílvio Caldas falam do zinco, mas logo acrescentam que aquele zinco esburacado deixava entrar a lua, com seu cortejo de estrelas. Dependuradas na corda, as roupas comuns eram um festival de cores, como se todos os dias merecessem a alegria de um feriado nacional.
Vinte e sete anos mais tarde, em 1974, vivíamos os “anos de chumbo”. A eleição que começaria a despoluir o ambiente só iria acontecer no dia 15 de novembro. Compreende-se, pois, porque, em janeiro – ao lançar seu samba “Barracão de zinco”, um dos maiores sucessos da “divina” Elizeth Cardoso – os compositores Antônio de Pádua Vieira Costa e Oldemar Teixeira de Magalhães tomaram suas precauções. Relendo neste ano da graça de 2021, a letra até soa politicamente incorreta, mas naqueles longínquos tempos em que o general Emílio Garrastazu Médici era substituído pelo general Ernesto Geisel, prudência e caldo de galinha não faziam mal a ninguém. Eis porque (a interpretação é minha, naturalmente) os dois mencionados compositores falaram de um barracão de zinco “pendurado no morro / pedindo socorro/ à cidade/ a seus pés/.
De bonito e enluarado o barracão tornou-se pura e simplesmente incapaz de ascender a uma condição melhor: miserável, desprotegido e angustiado. Barracão de zinco, “pobretão infeliz, tradição de meu país”.
Da Elizeth de 1937 à de 1974, e daquela à que nos deixou anos atrás, o país que talvez nos deixasse saudade só fez piorar. Deixou-nos uma imensa (e também aparentemente imutável) vergonha. Os barracos, outrora “sem trinco”, passaram a se trancar a sete chaves; lá embaixo, as mansões e até casas simples de classe média transformaram-se em fortalezas.
Um estudo recentemente divulgado pelo conceituado INSPER mostrou que a distribuição da renda não piorou nas duas primeiras décadas deste século, como se vinha pensando, mas para enxergar o tiquinho que melhorou, só com uma lupa bem calibrada. A meia dúzia que ocupa a pirâmide da pirâmide social continua a auferir o equivalente da renda dos cinquenta por cento situados na parte de baixo. Continuamos a ser um país com duas justiças, a dos ricos e a dos pobres, o que mudou foi a impotência que hoje sentimos quando pensamos em pôr abaixo essa obscenidade, uma vez que os sapientes constituintes de 1988 a “petrificaram” no artigo 5º. Inciso LVII da Carta Magna.
Tempos atrás, quando se contorciam tentando explicar a fragilidade de nossa democracia, historiadores e sociólogos sempre invocavam o francês Alexis de Tocqueville, autor de “A Democracia na América”, de 1835. Tocqueville entendia que a grande vantagem norte-americana era a “arte da associação”, virtude que desconhecíamos por completo. Isso parece estar mudando, mas o exemplo que me vem à mente talvez não seja do agrado dos que me honram com sua atenção. Semanas atrás, em Araçatuba, diversas quadrilhas associaram-se para aterrorizar e assaltar a cidade.

Bolivar Lamounier  foi paraninfo  de contabilidade da Escola Colônia em Caraguatatuba

Um dos cientistas políticos mais reconhecidos e renomados  do Brasil, de todos ostempos, Bolívar Lamounier é sócio-diretor da Augurium Consultoria. É autor e organizador de diversos livros como “A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedades” (Ed.Campus,2009); “Os Partidos e as Eleições no Brasil” (Editora Paz e Terra,1975), co-autoria com Fernando Henrique Cardoso; e “Brasil e África do Sul : Uma Comparação” (Editora Sumaré, São Paulo,1996). Seu blog é publicado no site da revista “Exame”. Foi o primeiro diretor-presidente do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (IDESP). É membro da Academia Paulista de Letras. Bacharel em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com pós-doutorado em Ciência Política pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
Humildemente, como é do seu feitio, em 1987, a meu convite, no auge de sua brilhante carreira intelectual e de analista político na imprensa brasileira, o professor Bolivar Lamounier, aceitou meu convite e se tornou paraninfo dos formandos do Curso Técnico de Contabilidade de Caraguatatuba, em 1097;

Pitagoras Bom Pastor

Pitágoras Bom Pastor de Medeiros, é formado em direito e pós graduado em jornalismo digital

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