Cheiro de Mentira
Diário do ano da peste de 2021
Por Marcus Ozores
Diário do ano da peste de 2021. Hoje é terça feira dia 17 do mês do cachorro louco e nada de novo no front. As tropas continuam nas trincheiras o céu está azul e escutam-se disparos ao longe. Um cheiro de mentira podre no ar e gritos de mulheres apaixonadas por homens que tocam berrante pedindo clemência e dizendo frases sem nexo. Nas cidades as fardas estão dependuradas e os obuseres calados . Nos campos é tempo de queimadas e os velhos mateiros dizem que é de tempo de tocaia para a caça do anu. Ninguém faz ruido e os poucos que se movem fazem com os passos medidos, contidos, e andando nas beiras dos muros escondendo na roupa camuflada os instintos premeditado. Thanatos enfrenta Eros e da briga dos egos dos semideuses a esperança é sepultada.
E por isso continuo aqui na república anarquista dos Tupinambás de Barequeçaba lançando minhas granadas do “Só a poesia nos Salvará”.
E hoje nossa nau da língua portuguesa tras os versos de João Vário foi o principal pseudônimo de João Manuel Varela, que também assinava certos textos como Timóteo Tio Tiofe e Geuzim Té Didial, nascido em Mindelo, na ilha de São Vicente, em 7 de Junho de 1937. João Vário foi poeta, escritor, neurocientista, cientista e professor. Estudou medicina nas universidades de Coimbra e de Lisboa e doutorou -se na universidade de Antuérpia, na Bélgica, onde foi pesquisador e professor de neuropatologia e neurobiologia. Retornou à Mindelo natal após aposentar-se, e aí morreu a 7 de Agosto de 2007.
Os dois poemas que trago hoje para apresentar a voces são do livro intitulado Exemplos editado pela editora portuguesa Tinta-da-China. O volume Exemplos de João Vário reúne os volumes Exemplo Geral (1966), Exemplo Relativo (1968), Exemplo Dúbio (1975), Exemplo Próprio (1980), Exemplo Precário (1981), Exemplo Maior (1985), Exemplo Restrito (1989), Exemplo Irréversible (1989), e Exemplo Coevo (1998). Veja a foraça da poesia de João Vário.
Exempo 1
Homem de pouca fé, por que temes o peso dos teus passos?
Vamos pela vida arrastando essas noções
de nação, de cultura, de civilizações
– coisas estranhas, sem dúvida, à índole do mundo,
da fraternidade ou da natureza,
porém coisas talvez da ordem das coisas,
das fábulas ordinárias,
mas será que somos disto ou daquilo, que a verdade é essa,
que não escutamos senão de dois ouvidos
e há um país para a leitura
dos nossos mitos próprios
e que a alma não acende além do madeiro recebido
as parábolas que o auxílio sugere
e as volvem, quando deus morre, melhor árbitro do mundo?
EXEMPLO 2
Sabe-se que os homens são fracos, volúveis,
que esta terra é pequena e molesta,
e o bem e o mal apenas são esse tédio das euménides,
porque, em verdade, os justos não se revoltam,
as musas são imperturbáveis
e não pode haver Sodomas e Gomorras indefinidamente,
porque o homem olha e é Deus que se faz estátua.
Tal, se nos interrogamos sobre o sentido do desvelo
ou da violência, como ele as duas metades
do nosso corpo separa, dando metade
às nossas camas e a outra metade distribuindo
por estranhos como moeda pobre ou erva de Constantinopla,
o fundo tocamos de tal imprevidência e a abundância
que a vida reduz a essa conta divina: o âmago irreconhecível,
a casa, a mulher e tal dom da imaterialidade, da decifração.
Homem de pouca fé, por que temes o peso dos teus passos?